
Você se sente como eu, perplexo diante da situação nunca vista, mais espantado que temeroso?
Não que eu subestime a pandemia, de forma alguma. Apenas a vejo, até este momento em que escrevo, se aproximando dia após dia, mas ainda distante de mim. Por enquanto o que ocupa minha mente é a surpresa com a onda que avança, tomando o planeta.
Você também se espantou com a cena do papa caminhando pela rua deserta de Roma? Ele estava a caminho da igreja onde rezaria por nós, talvez pediria por um milagre. Se não fosse pelo ciclista que passava no momento em que a foto foi feita, seria uma imagem dos fins dos tempos. O ciclista, investido de sua banalidade, reafirma que estamos no nosso velho mundo, que a vida segue.
A primeira vítima do coronavírus no Brasil foi um porteiro aposentado. A primeira vítima da peste que assolou a cidade de Orã no livro de Albert Camus foi o porteiro do prédio onde vivia o narrador.
Que livro maravilhoso, A Peste! Neste momento, parece que fala de nós. Não digo que Camus profetizasse. Eu é que uso o livro como espelho buscando nele uma narrativa que me ajude a processar a realidade que me cerca. É uma profecia ao contrário, uma projeção feita pelo leitor em busca de respostas.
“A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim desse período cheio de sinais desconcertantes e o início de um outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico.”
É Camus falando de seus personagens diante da peste que se espalha por Orã. Poderia ser um de nós comentando o Brasil desta semana.
“Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem dúvida, teriam vencido.” Mas agora os hábitos precisam ser derrubados, o isolamento se impõe. Passamos a ser aqueles que veem o mundo pela janela.
Não tenhamos vergonha de observar qualquer movimento lá fora. Nada de se esconder por trás da cortina, com medo de ser notado. A janela é nossa aliada.
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Olhar pela janela é uma ação mal afamada. Abelhudos, desocupados e medrosos é que olham pela janela. Uma grande injustiça que temos a chance de consertar. Por trás do preconceito, a crença de que quem observa o mundo pela janela não tem coisa melhor para fazer. Devemos estar ocupados trabalhando, sempre. Ninguém diz “tive um grande dia olhando pela janela”.
Me corrijo: tenho um amigo que revela ter grande prazer observando a rua onde mora e os transeuntes de aparência banal, mas que — quem sabe? — carregam segredos, pecados e paixões que ele nunca conhecerá.
Numa sociedade construída sobre outras bases talvez as pessoas não só passariam mais tempo à janela como compartilhariam suas impressões. Se temos um mundo todo lá fora, com árvores, pássaros, cães vira-latas, vento, sol e chuva, por que relegá-lo à banalidade e nunca o desfrutar com calma e atenção? A resposta é: temos que nos manter apressados e ocupados para parecer importantes. Ocupados com trabalho, com a produção de alguma coisa, capazes de afirmar: tempo é dinheiro.
“A única coisa que me interessa, respondi-lhe, é encontrar a paz interior” – é Camus, novamente. Camus que fez literatura como quem faz filosofia. Sem a possibilidade de mantermos a agenda cheia, vem a chance de experimentar outros hábitos e rotinas. Trabalhar até, mas quem sabe resta tempo para olhar lá fora buscando nada, experimentando essa forma de meditação em pé, testando uma rebelião inocente contra as demandas urgentes e geralmente insignificantes que ocupam nossos dias.
“Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.”
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Não entenda as citações que uso aqui como sinal de preguiça da minha parte, mas de generosidade. Dou-lhe o que há de melhor perto de mim, que é esta obra de leitura fácil e ao mesmo repleta de ideias inspiradoras.
“Este mesmo flagelo que vos aflige vos eleva e vos mostra o caminho.”
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Falar ao telefone é um hábito fora de moda, já extinto entre as gerações que vivem com um telefone na mão. O aparelho deles é usado de outros modos e para outros fins. Preste atenção: uma pessoa de 20 anos jamais usa a palavra telefone para designar o aparelho do qual nunca desgruda, mas sim a palavra celular.
Vem da Espanha, país cuja população está mergulhada no confinamento, a notícia de que as pessoas voltaram a falar ao telefone. Inclusive, no telefone fixo, redescoberto nesses dias provavelmente porque é mais confortável para longas conversas do que o celular.
Leio no jornal El País o que diz o porta-voz de uma companhia telefônica: “Nestes momentos difíceis, todos queremos escutar a voz de nossos familiares e das pessoas importantes para nós, comprovar que estão realmente bem, sobretudo [a voz] dos mais velhos, que são os que continuam usando o telefone fixo.”
Aqui está outra explicação para o crescimento das chamadas por telefone fixo: é a forma possível de contato com idosos que não estão saindo de casa nem recebendo visitas. Muitos deles não usam celular.
As tecnologias de comunicação é que fazem a nossa situação diferente daquela em que se encontram os personagens de A Peste. Aqui trocamos ininterruptamente informações verdadeiras e falsas, apoios e tolices, humor e pesar. Aqui a cidade é quase planetária porque está interconectada. Quase, sempre quase, porque não saberemos de fato como se sentem os italianos, os chineses ou os espanhóis enquanto não vivermos o que eles vivem. Números assustam, mas não substituem a experiência.
“Mas o que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais.”
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Exagero. Quem não se perguntou pelo menos uma vez se há exagero na reação ao coronavírus? Precisa mesmo parar minha cidade? Meu país? Parar o mundo?
Há várias explicações para esse questionamento: ceticismo em relação a ciência; descrença nos governos; resistência a qualquer mudança na vida cotidiana; foco restrito na atividade econômica; tendência em acreditar em teorias conspiratórias. E tem as razões que, como um mosquito minúsculo e incômodo, picam todos nós em algum momento: espanto diante do gigantismo dos fatos, surpresa diante do nunca visto antes; e o distanciamento que nos faz pensar “não vai acontecer comigo”.
“No entanto, muitos continuavam a esperar que a epidemia cessasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por consequência, não se sentiam ainda obrigados a nada.”