Em dezembro de 2000, registrei neste texto uma hist\u00f3ria que\nminha m\u00e3e havia me contado. O t\u00edtulo era \u201cV\u00f3 Alta\u201d e o texto foi um presente de\nNatal que dei para cada um dos meus irm\u00e3os.<\/p>\n\n\n\n
\u201cN\u00e3o sei como a primeira galinha chegou ao quintal da minha\nav\u00f3. Mas por falta de uma informa\u00e7\u00e3o n\u00e3o vou deixar de contar a hist\u00f3ria toda.<\/p>\n\n\n\n
De uma galinha minha av\u00f3 passou a ser dona de uma ninhada\nde pintinhos. A cria\u00e7\u00e3o continuou crescendo, sem que ningu\u00e9m prestasse aten\u00e7\u00e3o\nnela. Comia-se ovos, matava-se frangos. Havia, por\u00e9m, algum controle para que a\ncria\u00e7\u00e3o continuasse crescendo.<\/p>\n\n\n\n
A minha av\u00f3 \u00e9 que fazia esse controle. Fico imaginando que\ncontava as galinhas todo semana. Um dia, considerou que era hora de vender o\nfruto do seu trabalho. Achou um comprador, fez um pre\u00e7o, negociou e p\u00f4s o\ndinheiro no bolso.<\/p>\n\n\n\n
Eram 200 contos de reis. O que se comprava com 200 contos\nde r\u00e9is pelos idos de 1940 eu n\u00e3o sei. \nSei o que minha av\u00f3 fez com o dinheiro. Foi \u00e0 cidade, S\u00e3o Pedro da\nUni\u00e3o, e comprou cortes de tecido para fazer roupas para todos os sete filhos.\nMinha m\u00e3e foi privilegiada com dois cortes. Meu av\u00f4 iria fazer uma viagem para\numa cidade um pouco maior, Guaran\u00e9sia, e pretendia lev\u00e1-la. Por isso minha m\u00e3e\nprecisava de roupas novas. A roupa que usava na ro\u00e7a n\u00e3o combinava com a\ncidade. Ganhou sapatos novos tamb\u00e9m. No s\u00edtio n\u00e3o se usava cal\u00e7ados no dia a\ndia.<\/p>\n\n\n\n
O dono da loja ficou surpreso e contente com a boa venda\nque fez para minha av\u00f3. Para agradecer com uma gentileza, deu a ela um pacote\nde meio quilo de balas.<\/p>\n\n\n\n
Imagino que aquele foi um dia especial para minha av\u00f3. Dona\nde casa e m\u00e3e de sete filhos, mulher de sitiante, ela devia trabalhar muito sem\nnunca p\u00f4r a m\u00e3o em dinheiro. Com as galinhas ganhou algum sem chamar a aten\u00e7\u00e3o\nde ningu\u00e9m, como precisava ser. Com o que ganhou fez o que para ela devia ser o\nmais importante, cuidou dos filhos.<\/p>\n\n\n\n
Imagino minha av\u00f3 voltando pra casa orgulhosa e excitada\npelas compras, planejando as costuras que iria fazer. Filhos e marido devem ter\nsido pegos de surpresa pela s\u00fabita autonomia financeira da minha av\u00f3, pela\ndemonstra\u00e7\u00e3o de carinho, pelo meio quilo de balas. Os cortes de tecido, que\nsuponho simples j\u00e1 que vendas do interior n\u00e3o oferecem mercadorias\nsofisticadas, eram para eles, para faz\u00ea-los bonitos e respeit\u00e1veis na cidade\ngrande. Na vida que levavam, roupa nova era um luxo. Foi a forma da minha av\u00f3\ndar um mimo para cada filho e mostrar seu amor.\u201d<\/p>\n\n\n\n
**<\/p>\n\n\n\n
Meses depois de registrar por escrito esta lembran\u00e7a da\ninf\u00e2ncia de minha m\u00e3e, ela recebeu o diagn\u00f3stico de Alzheimer. Por algum tempo\na perda das mem\u00f3rias dela me perturbava em rela\u00e7\u00e3o ao pr\u00f3prio sentido das\nnossas vidas. O esquecimento parecia tirar todo o valor das experi\u00eancias\nvividas. <\/p>\n\n\n\n
Esse questionamento n\u00e3o existe mais. Me dei conta de que\nestava avaliando uma vida toda com base na situa\u00e7\u00e3o atual. A beleza de cada\nminuto da vida da minha m\u00e3e tem um valor inestim\u00e1vel. Se ningu\u00e9m se recorda\ndaquele momento, ainda assim ele foi importante quando aconteceu. O momento \u00e9\ngigante e se esqueci disso foi porque sou obcecada pelo presente e pela ideia\nde eternidade, como quase todo mundo, eu suponho.<\/p>\n\n\n\n
Sessenta anos depois de ver a m\u00e3e dela voltar para casa com\nos cortes de tecido, naquele s\u00edtio l\u00e1 no interior de Minas que eles trocariam\npor um peda\u00e7o de terra nas \u00e1reas novas do Norte do Paran\u00e1, minha m\u00e3e me contou\na hist\u00f3ria. Ela esta linda enquanto contava. <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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