Ele era um funcion\u00e1rio p\u00fablico com um bom posto na\nprefeitura. Homem alto, elegante. Frequentava o melhor clube da cidade.\nNamorava uma loira, que chamava a aten\u00e7\u00e3o por onde passava. No trabalho, uma de\nsuas responsabilidades era avaliar os pedidos de autoriza\u00e7\u00e3o de circos e\nparques de divers\u00e3o para se instalar temporariamente em terrenos do munic\u00edpio.\nDe praxe, o circo que recebia o carimbo de \u201csem obje\u00e7\u00f5es\u201d distribu\u00eda alguns\ningressos de cortesia no departamento. O melhor par de ingresso ia para o\nchefe. <\/p>\n\n\n\n
Era o tempo em que os circos tinham muitos animais. Quanto\nmelhor o circo, mais feras colocava no picadeiro. Naquela noite, o chefe de\ndepartamento e sua loira e linda namorada foram convidados a sentar em um\ncamarote, logo em frente ao picadeiro. Podiam ver de perto a sapatilha da\nbailarina que se equilibrava sobre o cavalo branco, quase tocavam o macaquinho\nque acompanhava o palha\u00e7o e admiraram o le\u00e3o, que andava em c\u00edrculos e que at\u00e9\nolhou na dire\u00e7\u00e3o deles. <\/p>\n\n\n\n
O domador envergava uma casaca e um chicote, que ele\nestalava no ar para manter o felino intimidado. Antes de cada estalada, olhava bem\npara o le\u00e3o. Quando a ponta do chicote levantava a serragem do ch\u00e3o do\npicadeiro, ele olhava para a loira na plateia. Era um olho no le\u00e3o e outro na\nloira. No le\u00e3o, na loira. Le\u00e3o, loira. O chicote estalava e ele se empertigava,\nde olhos semicerrados, procurando a mulher bonita na plateia. Sobre o\nfuncion\u00e1rio p\u00fablico podia se dizer tudo, menos que tinha sangue de barata. Mais\num estalo e mais um olhar e ele n\u00e3o se conteve. Pulou para dentro do picadeiro\ne deu um soco no rosto do domador. Como se a f\u00faria fosse tanta que precisasse\nde outra v\u00edtima, virou-se para o le\u00e3o e o chutou nas ancas. Depois correu de\nvolta para o camarote, onde a loira o esperava com gritos hist\u00e9ricos. <\/p>\n\n\n\n
As arquibancadas quase vieram abaixo de tantos aplausos.\nNunca souberam que o ataque ao le\u00e3o e ao domador n\u00e3o fazia parte do espet\u00e1culo.\n<\/p>\n\n\n\n
**<\/p>\n\n\n\n
\u00c9 o primeiro dia de aula da menininha. Seis anos e j\u00e1 ter\u00e1 a\nresponsabilidade de ir e voltar sozinha da escola. Algo normal naquela \u00e9poca,\ncome\u00e7o da d\u00e9cada de 50. A m\u00e3e mostra o caminho para a filha. Uniformizada de\nsainha azul e camisa branca, de m\u00e3os dadas com a m\u00e3e \u2013 na outra m\u00e3o, a pasta de\ncouro onde leva os cadernos \u2013 ela embarca no \u00f4nibus, logo ali, na quadra onde\nmora. Descem em frente \u00e0 escola. A m\u00e3e explica que, para voltar para casa, ela\ns\u00f3 tem que tomar o \u00f4nibus de novo. Assim a menininha fez. Ao meio-dia rumou\ndecidida para o mesmo ponto onde descera com a m\u00e3e e l\u00e1 embarcou no \u00f4nibus. Foi\nat\u00e9 o ponto final, onde j\u00e1 n\u00e3o havia mais para onde ir. Olhou em volta e viu o\ncentro da cidade, uma pra\u00e7a movimentada, cal\u00e7adas lotadas de adultos que\nandavam com pressa. Caminhou olhando em volta. Estava na frente de um bar.\nAbordou o homem que guardava garrafas na geladeira:<\/p>\n\n\n\n
— Sa\u00ed da escola e peguei o \u00f4nibus como minha m\u00e3e mandou,\nmas n\u00e3o sei onde t\u00e1 a minha casa.<\/p>\n\n\n\n
O comerciante perguntou se ela sabia o n\u00famero de telefone de\ncasa. <\/p>\n\n\n\n
N\u00e3o tinha telefone em casa.<\/p>\n\n\n\n
Mas lembrou do \u00fanico n\u00famero de telefone que conhecia, o do\npadrinho: 3371.<\/p>\n\n\n\n
O n\u00famero foi discado e o grande aparelho preto, pesado e\nbrilhante foi entregue a ela.<\/p>\n\n\n\n
— Al\u00f4 \u2013 disse a voz grossa do padrinho.<\/p>\n\n\n\n
Era a primeira vez que ela falava ao telefone. S\u00f3 teve tempo\nde explicar o problema. Devolveu o aparelho ao comerciante, que ditou o\nendere\u00e7o ao homem que logo chegaria para peg\u00e1-la.<\/p>\n\n\n\n
Enquanto esperava, ganhou uma garrafinha de Coca-Cola, a\nprimeira de sua vida.<\/p>\n\n\n\n
A partir do dia seguinte, ela rumou para o grupo escolar bem\ninformada de que o \u00f4nibus que a levaria de volta para casa estava l\u00e1, em frente\nao ponto em que ela descia para ir \u00e0 escola, mas do outro lado da rua.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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