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Em suas memórias, John Updike faz uma descrição minuciosa de um momento em que se sentiu feliz. Veja bem, ele não afirma que é feliz, que desfruta de bem-estar contínuo e contentamento ininterrupto, mas registra um instante de felicidade, uma brecha, um flagrante.  Foi assim:

“E outra manhã, uma manhã de domingo, por volta das nove, voltando para casa pela entrada de automóvel com roupa de missa, e tendo pegado da caixa de correio o [jornal] Globe de domingo, experimentei uma felicidade tão intensa que tentei decompô-la em seus componentes.”

Ou seja, a felicidade surgiu em um dado momento (por volta das nove horas) quando ele, ao voltar da missa, recolheu o jornal. Foi intensa o suficiente para que o escritor se desse conta dela. Aqui abro parênteses: dar-se conta da felicidade, quando ela é duradoura e nasce da rotina, é tarefa para a qual não somos treinados. “Era feliz e não sabia” — frase certeira que usamos quando a aparente felicidade acabou e aí, só aí, percebemos que ela existia. No caso de Updike houve um momento de iluminação.

Updike, chegando aos 60 anos, registra todas as possíveis causas daquela onda de felicidade que tomou conta dele: a agitação do período de Natal tinha acabado, ele e a esposa tinham feito amor “com resultados bastante satisfatórios, o que, com esta minha idade, é motivo para congratular-me”, o dia estava agradável (frio e um pouco de neve), ele terminara um trabalho chato, estava animado para começar outro trabalho, iria receber a visita da filha e dos netos. A sétima e última explicação que ele encontra para aquele contentamento tão palpável foi o momento em si, o momento perfeito de um dia comum. Updike, nós todos, aqui temos algo em comum. O momento perfeito era o desjejum sem pressa, na proteção de um ambiente amigável (a cozinha, talvez a copa), com um jornal que traz algo familiar e adorado (a tirinha do Homem Aranha, que ele acompanhava) e o café da manhã (“granola, amêndoa, mel e suco de laranja”).

Refazendo os passos de Updike, que decompôs a felicidade em seus elementos, diria que, em primeiro lugar, ter alimento é fundamental para ser feliz. Quem passa fome é infeliz. Por outro lado, quem tem comida à vontade não é necessariamente feliz. Como tudo o mais que é fundamental para a sobrevivência – o ar, a água, a liberdade de ir e vir –, a comida é pouco valorizada quando existe em abundância. Em segundo lugar, um café da manhã tranquilo, seja pão com manteiga na padaria ou bufê em um hotel de luxo, dispara a sensação de contentamento, como um aviso: “o dia começa bem, com a passagem entre o sono e a vigília acontecendo de forma branda e morna.” Mas a maioria de nós sente que precisa fugir logo cedo da introspecção e se conectar ao mundo lá fora. Aí entra o jornal, que faz a ponte entre a intimidade do café da manhã e a realidade. Ainda não é a realidade que entra no nosso dia. É uma versão filtrada dela, intermediada pelo papel, pela tevê, pelo rádio. Quando os jornais não tiverem mais edições em papel, eu, que gosto de folhear o jornal enquanto tomo café, farei o quê? Acho que não estou preparada para colocar um dispositivo eletrônico na minha frente desde as primeiras horas do dia sabendo que continuarei conectada até a hora de dormir. Veremos.

Updike se sentia bem (como mostram as referências à família, ao trabalho, ao sexo, à prática religiosa) e então um momento singelo (alimento, abrigo, uma conexão pacífica com o mundo) provocaram o êxtase. A felicidade se tornou tão intensa, que ele sentiu necessidade de estuda-la e ironicamente questionou a conclusão mais óbvia a que podia chegar: “Pode a felicidade ser simplesmente uma questão de suco de laranja?” Claro que ele sabia a resposta.