Nu, mas protegido

A pandemia mexeu com a cabeça do Zé Luiz. Fazendo o balanço de 2020, ele decidiu que é hora de viver intensamente. Chamou a Marisa, sua esposa:

-- Sabe aquela lista de coisas que queremos fazer antes de morrer? Tá na hora de começar.

Marisa gostou da ideia. Ela também anda desnorteada com tudo que enfrentou no ano passado. Mas quando o casal foi conferir a lista acumulada ao longo dos 20 anos de casados, percebeu que a maioria das aventuras que pretendem viver são inviáveis em tempo de pandemia. “Queremos voltar pra casa e ter o que lembrar e não ir direto pra UTI.” Só um item da lista era inofensivo: passar o dia na praia de nudismo.

-- Pensa bem, Marisa. É o momento perfeito para estrear no naturismo.

-- Perfeito por que, Zé?

-- Por causa da máscara!

A sogra não tinha avisado que o apartamento em Balneário Camboriú estaria disponível? Ela foi passar o Natal com a irmã em Irati e resolveu que só sai de lá para tomar vacina. Havia mais um interessado em emprestar o apartamento da dona Vanda: o Dudu. Mas o Dudu foi banido da família quando descobriram que desde agosto vinha participando de baladas secretas, além de andar muito ativo no Tinder. O apartamento era todinho do Zé Luiz e da Marisa, que estariam pertinho das praias de naturismo de Balneário Camboriú.

A viagem foi curta e planejada. O ponto alto foi a primeira quarta-feira do ano, quando rumaram para a Praia do Pinho. Para não passar por novatos -- o que eles eram – e não chamar a atenção – o que mais temiam --, Zé Luiz e Marisa desceram do carro pelados, com máscara e protetor facial de plástico, também conhecido como face shild. Na bolsa de palha, Marisa levava toalhas, filtro solar e álcool em gel.

Pela primeira vez desde março de 2020, Zé Luiz adorou usar a máscara. Ninguém veria seu rosto rubro de vergonha (só no primeiro momento) nem seus olhos que ele não sabia para onde direcionar. Se aparecesse um conhecido, nem perceberia que era ele.

-- Zé, tem um problema...

-- Que foi, amor?

-- Meus óculos de sol estão embaçados. Até o protetor facial está embaçado. Não consigo ver nada.

-- Melhor assim, Marisinha.

-- Mas se não for para olhar as pessoas, que graça tem vir à praia?

-- Para de ser indecente, amor!

-- Até quando as pessoas estão de roupa de banho, a gente dá aquela conferida, Zé!

Marisa também não conseguiu convencer o Zé Luiz a usar bronzeador.

-- Ficar se esfregando em público e pelado é coisa de tarado.

-- Para de ser tonto, Zé! Isto é uma praia de nudismo.

-- Tenho meus princípios, Marisinha.

Apesar desses pormenores, o dia foi delicioso. Zé Luiz não enxergou muita coisa e evitou o banho de mar para não molhar a máscara. Também está muito queimado, mas felizmente o rosto foi bem protegido. Como não fazem parte de grupo de risco, ele e Marisa não têm esperanças de tomar a vacina em 2021. Por isso já estão programando outras idas a Praia do Pinho, sempre seguindo todos os procedimentos sanitários.

(Janeiro de 2021)


Uma taça de vinho e um passeio de Opala

Agora há pouco recebi o resultado do meu teste para covid-19. Deu negativo. Por isso me sentei correndo para registrar como alguém se sente ao tirar um elefante de cima dos ombros.

Estou com aquilo que, até fevereiro, chamávamos serenamente de virose. Fazia-se piadas sobre o diagnóstico: virose era um termo genérico que, desconfiávamos, os médicos utilizavam para todos os males que incluíam alguns sintomas bem banais: coriza, dor de cabeça, dor no corpo, fraqueza etc. Eu tive esses sintomas e, como não estamos mais em fevereiro, mas sim neste período especial chamado de pandemia, fiquei preocupada.

A família insistiu para que eu fizesse o teste. Fiz em um laboratório particular que, para entregar o resultado, demorou tempo suficiente para fazer de mim uma pessoa mais humilde, confusa e sofrida.

No que foi que errei? Onde poderia ter tido contato com o maldito coronavírus?

Mesmo agora que sei que não é “ele”, ainda me pergunto como posso ter sido contaminada por um vírus qualquer, se vivo praticamente em lockdown há dez meses. Será que ando descuidando do álcool gel?

Então é virose, mas não a corona-virose, também chamada de covid-19. Os sintomas diminuíram e, além do mais, estou muito aliviada. Dá vontade de sair para comemorar. Opa! Não dá. Então a comemoração se limitou a uma taça de vinho no almoço.  

***

Isso me lembrou um episódio vivido na época da faculdade. Naquela época batíamos papo pelo telefone fixo sob os olhares reclamões do resto da família, que também queria usar a linha. Em um desses papos, meu colega Claudio se queixava que estava entediado, um pouco deprimido, e eu o convidei a ir até a minha casa. Quando ele chegou, não parecia entediado. Ao contrário. É que no caminho entre sua casa na Conselheiro Carrão e a minha, na Visconde de Guarapuava, um motorista fechou o Opala que o Claudio tinha emprestado do pai e provocou um pequeno acidente. Foi sem consequências, mas parou o trânsito, deixou o outro motorista muito nervoso e exigiu que meu colega controlasse a situação. “Sabe que estou me sentindo melhor agora?” -- Ele me disse, todo sorridente. “O susto me fez me sentir mais vivo.” E para comemorar que tudo estava bem, fomos dar uma volta de Opala.

***

Nós somos assim. Não vicejamos totalmente na paz e na tranquilidade. Precisamos de sustos e choques para abrir os olhos.

***

Cadê o Opala, Claudio? Hoje é dia de dar uma volta para comemorar.

***

Meu pensamento agora está com quem recebeu o diagnóstico positivo. Ele não é uma sentença de morte. Quanto mais a pandemia avança no tempo, mais eficiente vai se tornando o protocolo de tratamento. Mas continua sendo muito assustador. Estamos juntos! Estamos em guarda!

(Dezembro de 2020)


Os novos selvagens

Diante da situação excepcional que vivemos, eu, Marleth Silva, julgo importante registrar como tem sido nossa vida com as crianças em casa em tempo integral. Veja bem: não tenho crianças. Mas elas abundam na vizinhança e estão todas em seus lares, desaparecendo por poucas horas quando, suponho, fazem aula online, dormem e comem. No resto do tempo, os novos selvagens correm livres, especialmente embaixo da minha janela e na quadra ao lado da minha casa. Por isso fiz anotações que poderão ser úteis nos estudos sobre os danos causados pelo isolamento social à sanidade mental da população.

30 de março: Os vizinhos do condomínio estão preocupados com o ânimo dos filhos pequenos. Por isso teremos uma pequena confraternização ao redor da fogueira. Vou levar marshmallow para as crianças. São tão queridas!

15 de abril: Meu filho reclama da gritaria constante. Eu gosto. A alegria das crianças me lembra que a vida segue apesar de tudo.

28 de maio: As áreas externas do condomínio estão tomadas por brinquedos deixados para trás pelo “bandinho”. Abandonaram também objetos que pegaram para brincar: talheres, manta de bebê e até um penico, daqueles esmaltados, que eu não via há uns 30 anos.

30 de maio: O penico desapareceu. Surgiu agora uma colher de pau, o que parece ser uma antena de tevê e uma lista telefônica. De onde as crianças desenterram essas coisas?

7 de junho: Os pequenos viram a vizinha fazendo tricô e não saem mais da casa dela. Querem aprender a tricotar. São sete crianças desmanchando os novelos, usando as agulhas como espadas e, o que é pior, fazendo perguntas sem parar.

13 de junho: Sugeri à vizinha que não atenda a campainha. As crianças continuam querendo aulas de tricô, especialmente a menorzinha, de quatro anos.

24 de julho: Meu filho grita com as crianças dia sim, dia não. Elas brincam lá fora das sete da manhã às nove da noite, sempre aos berros. Vou ter que mandá-lo desrespeitar o isolamento e dar umas voltas. Lá fora o vírus, aqui dentro a turba ensandecida...

31 de julho: O menino mais velho da gangue (uns oito anos) gritou tanto, tão alto e ininterruptamente, que imaginei uma fratura exposta ou picada de cobra. Mal cheguei à porta e ouvi a voz dele chamando os outros para brincar novamente. Nem chorando estava! Por essas e outras é que me coloco no lugar dos pais e rezo por eles.

4 de agosto: Quando veem algum morador, os pequenos bárbaros querem saber onde vai e o que vai fazer. Há pouco fui levar o lixo e cinco deles me seguiram: “quantos anos você tem?”, “por que você é tão baixinha?” Voltei correndo para dentro.

19 de agosto: A Marci veio devolver um livro. Nem entrou, trocamos poucas palavras. Quando chegou ao portão, foi abordada por uma das menininhas. Pobre amiga! Ouviu meia hora de monólogo naquele tatibitate de quem tem quatro anos. Fiquei olhando de longe. Estou ficando esperta...

7 de setembro - Me sinto como um herói de filmes de zumbi. Mal ponho o nariz para fora, eles se aproximam.

19 de setembro: Coitada da vizinha! Ofereceu brigadeiro para a legião de recém-alfabetizados. Agora eles aparecem todo dia e até fazem exigências! Hoje quiseram bolo do chocolate. Não sei do que seriam capazes se ela não corresse para a cozinha...

18 de outubro – Acordei assustada por causa de um pesadelo: às três da madrugada, as crianças brincavam lá fora, no escuro, gritando como sempre, e eu trancada em casa, com medo de sair. Será que chegaremos a esse ponto? Não duvido de mais nada.

(Novembro de 2020)


Uma saidinha, pelo amor de Deus!

Ando com saudades de Curitiba. Que eu sinta falta da cidade onde moro e de onde não tiro o pé há seis meses é algo que preciso registrar.

Tenho circulado um pouco, ou melhor, sempre que posso vou para a rua. Faço com entusiasmo tarefas que antes evitaria, como atravessar a cidade para comprar broinhas de fubá no Juvevê, devolver o livro para a prima que mora no Boqueirão, doar tampinhas para a ONG do Bairro Alto, comprar uma flor no orquidário do São Lourenço. Oba! Lá vou eu, feliz da vida, naquele percurso que poderia evitar e que me obriga a cruzar quatro bairros. É uma saidinha, afinal.

Mas é de carro que faço isso tudo e passeio de carro... bem, você sabe, é uma experiência sensorial muito pobre. O cheiro que sinto é o do meu Toyota e não o da rua. As coisas que vejo passam rápido e sem detalhes. Das pessoas com quem cruzo só sei dizer se usam máscara ou não.

Descobri a saudade alojada no meu peito quando parei na esquina da José Loureiro com a Doutor Muricy. Tinha acabado de sair do restaurante Pote Chopp, um herói da resistência gastronômica, onde se pode comprar uma deliciosa língua com purê e ervilhas. Um amigo descobriu a iguaria na sua busca por variedade nas marmitas que encomenda e apaixonou-se. Parece que agora come língua com purê e ervilhas duas vezes por semana: na segunda, compra no Pote Chopp e na terça, no Maneko’s. De tanto ouvir elogios ao prato, fui lá no Centro buscar língua para meu almoço. Fui pessoalmente porque moro no Cascatinha e a entrega ficava tão cara quanto a comida. Exagero... Fui porque queria ir. Porque como já disse, estou indo a qualquer lugar para sair de casa.

Voltemos então à esquina da José Loureiro com a Muricy. Parei ali, o almoço na sacola e a máscara no rosto, para ver o movimento. O Centro continua o mesmo, apenas com mais portas fechadas e menos transeuntes. Os velhos prédios; os sujeitos nas portas, aos berros, me chamando para comprar roupa de inverno; alguns comércios que vi tantas vezes que chegam a me emocionar. Por exemplo, ali mesmo na José Loureiro, quase esquina com a Westphalen, está a panificadora Camponesa, que faz um ótimo pão d’água e onde o proprietário, há muitos anos, me deixou comprar fiado mesmo sem me conhecer. Eu só com cartão e ele sem maquininha. Parece pouco, mas me senti muito bem ao ser capaz de matar a fome mesmo sem poder pagar. O mundo ideal não seria assim?

Dias atrás voltei ao Centro só para ir à Camponesa. Deixei o carro em um estacionamento a umas três quadras da panificadora e -- oba! -- caminhei na rua. Infelizmente não estava com fome e por isso não comi pão com manteiga no balcão. Levei o pão d’água para casa. Perguntei à moça do caixa sobre aquele senhor que me atendia e fui informada que morreu há três anos. O nome dele era Antônio Garcia Matias, que descanse em paz e conte com minha eterna gratidão. Já no carro, belisquei o pãozinho, tentadoramente quente, e... Tóóim! Algo de bom ainda existe neste mundo tomado por incêndios, vírus e ignorância! Pão d’água da velha padaria no velho Centro da minha velha cidade. Velha também estou ficando eu, mas isso não tem nada a ver com o assunto desta coluna e por isso me despeço por aqui.

(Outubro de 2020)


A vida depois da morte (ou a busca pelo avô Pedrinho)

O avô Pedrinho está sentado (no centro da foto) ao lado da avó Bernardina e cercado por filhos, genros, noras e netos.

Foram muitos os que disseram que toda pessoa morre duas vezes: a primeira quando ocorre a morte física e a segunda quando se é totalmente esquecido. Ou, como colocou Roland Barthes ao perder a mãe, em 1977:  “A morte, a verdadeira morte, é quando morre a [última] testemunha.” Barthes entendia que sua mãe só desapareceria definitivamente quando desaparecesse ele próprio, a última testemunha da vida dela, em quem a lembrança da voz, dos pensamentos e dos sorrisos daquela mulher persistiriam.
Cada vez que a imagem da mãe passava, por fugidio que fosse o momento, pela memória do filho; cada vez que alguma frase que costumava repetir saia naturalmente da boca do filho, aquela senhora ressurgia, ainda que de forma imaterial e passageira.
Para o ser humano, a vida é memória.
Por isso, ao escrever pequenas anotações sobre minha família, me impressionei com a ausência de informações sobre meu avô paterno. Sobre o avô Pedrinho, quase nada se conta. Ele aparece na foto do casamento de sua filha Alice, nos anos 1940. Era mencionado pelos filhos de forma carinhosa. Referiam-se a ele pelo diminutivo porque carregava o mesmo nome do pai: Pedro Caetano da Silva. Esta é uma dedução minha. Ninguém me disse, como quase nada se disse sobre este avô que morreu muito tempo antes da esposa e que teve contato com poucos netos. Essa sucessão de fatos fez com que a presença da avó prevalecesse e, consequentemente, a presença da família dela, os Machado Homem. O avô Pedrinho e seus familiares ficaram ali, naquele ponto onde ele, a última testemunha, nos deixou.
“Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome.
Os nomes, embora mais resistentes do que a carne, rendem-se ao poder destruidor do tempo, como as lápides.”
Os versos são de Manuel Bandeira. Novamente, a ideia da morte dupla, em etapas.
Gosto desta frase da artista plástica Olga Bilenky, dita em entrevista sobre a escritora Hilda Hilst, de quem foi amiga durante muitos anos:
"Eu sou essa pessoa que fez parte daquele tempo, e que por algum erro do destino ficou para contar a história".
Olga se descreve como um elo de ligação. Seu tempo, o que passou; sua presença aqui, um acidente. Mas é ela que mantém vivo o mundo desaparecido, onde se sentava em um sala de estar com a amiga brilhante para falar de arte e de amores. A amiga se foi, mas volta pelas palavras de Olga.
Meu avô Pedrinho é um exemplo de como a vida na memória é persistente, como se agarra as novas gerações. Como um gene teimoso que não se manifesta em duas gerações e depois reaparece, poderoso, na terceira. Seus conterrâneos desapareceram há décadas, mesmo seus filhos não podem mais falar deles, seus netos não têm muito o que dizer. Mas algo ficou e ressurge teimosamente porque ele faz parte de uma história e sempre haverá alguém que sentirá necessidade de conhecer a história toda. Em outras palavras, de conhecê-lo.
Consegui a parceria de uma parente que ainda vive em Minas Gerais, lá por onde nasceu e cresceu o vô Pedrinho, e que se prontificou a procurar referências a ele nos registros oficiais.
Se conseguirmos, serão algumas datas, o que tem muita importância na historiografia, e um pouco menos para nós, familiares, que, preferíamos ouvir alguma historieta, qualquer que fosse, sobre ele.
“A memória deve ser estruturada em datas. Não pode haver coerência ou sequência nela a menos que seja ancorada no tempo.”
As palavras são de Martha Gelhorn, que era jornalista. Também era escritora, poeta e pessoa sensível e por isso logo adiante admite:
“Mas eu não tenho noção do tempo nem controle sobre minha memória. Não posso ordená-las antes de falar delas. Inesperadamente, ela me traz imagens desconectadas do que veio antes e do que vem depois.”
As lembranças surgem como criaturas teimosas que não aceitam serem deixadas de lado. O que foi vivido ainda existe em algum lugar e, vez por outra, irrompe.
O filósofo italiano Paulo Rossi diz que a memória é entendida na tradição filosófica como persistência. Por isso – veja que interessante --, estudar a memória significa entrar num campo de discussões que envolve o esquecimento e uma área muito sutil, a reminiscência. A reminiscência, ele explica, é a capacidade de recuperar algo que se tinha e que se perdeu. Devagarzinho, imagem por imagem, palavra por palavra, que vão voltando enquanto se rememora.
Podemos “reminescer” até sobre a experiência de ouvir as reminiscências de outros. De nossos pais e avós, por exemplo. As reminiscências dos outros às vezes são tão vívidas que nos confundem, como se tivéssemos estado lá, testemunhado aquela cena, da mesma forma que um grande livro nos faz ver situações que nunca aconteceram. Reinventamos essas experiências alheias, redesenhamos as cenas com a nossa imaginação. Recontamos como se tivéssemos certeza sobre falas e fatos. Elas não são o que de fato foram e, mesmo assim, sobrevivem. Ou melhor, só assim elas sobrevivem.
Voltando ao meu avô Pedrinho, que era agricultor. As pessoas humildes vivem anônimas e não deixam pistas e registros. Tenho outro avô, o Manoel Machado Homem, que ocupou cargos públicos e foi professor. Foi “pessoa importante” em uma pequena cidade do interior de Minas. Sobre ele há registros, há datas. A maioria de nós está mais próxima da realidade do vô Pedrinho. A maioria de nós depende totalmente da memória de quem nos ama para sobreviver um pouco mais.


O amor, a liberdade e o mito

Minha amiga Yurie me deixou ler o caderno em que seu pai,
Hideo Handa, registrou resumidamente a vida dele. O senhor Handa fez algo rara
ao escrever suas experiências para apresentá-las aos filhos. Pouquíssimas
pessoas dão-se a esse trabalho. Talvez porque não se sintam à vontade
escrevendo, o que é uma pena. A não ser que você viva disso, que faça da
escrita sua profissão, não há por que limitar a autoexpressão por temer o mau
texto. Não há texto ruim quando leitor e autor estão conversando sobre suas experiências.
A intimidade interessa mais que a correção ortográfica ou a sintaxe.

Voltando ao senhor Hideo Handa. Para contar sua história,
ele fala também dos pais, do Japão onde nasceu, do Brasil onde chegou em 1929,
e dos filhos. Tem pelo menos três gerações conectadas ali. Ou quatro se
imaginarmos que seus netos vão ler suas anotações.

Das memórias de Hideo Handa, quero extrair um trechinho que
me impressionou. Nos anos 1980, dois de seus filhos foram trabalhar no Japão. Enquanto
estavam lá, convidaram o pai para visitá-los e rever o país para aonde nunca
tinha voltado desde que imigrara, na adolescência. O trecho que quero contar é
aquele em que o senhor Handa está no alojamento onde mora sua filha e mais seis
moças brasileiras. Ele as observa e se preocupa. Percebe que falta a elas o que
chama de “objetivo concreto” para estar ali, falta a elas uma razão que justifique
todo o sacrifício que estão fazendo. A vida de um dekassegui é muito difícil.

Então o patriarca pergunta ao grupo de moças o que as fez se
tornarem dekasseguis. Elas respondem com uma sequência de motivos apresentados em
ordem de importância. Em primeiro lugar, conhecer o Japão. Em segundo lugar,
ganhar dinheiro. Em terceiro lugar, construir uma família. E em quarto e último
lugar, buscar o amor. O senhor Hideo Handa se espanta com o que ouve. Para ele,
a resposta está claramente invertida. O amor, o mais importante, tinha que ser
a primeira razão para tudo. Afeto e família, para a pessoa ser feliz. Depois
vem o dinheiro. Depois vem o resto.

**

Suponho que o senhor Handa não se referia ao amor romântico,
ao amor parental ou a algum tipo de amor em particular. Ele fala de afeto
simplesmente. Sem esse elemento, seja lá em que forma o amor aparecer, o que
sobra na vida é o tempo, que preenchemos de maneira tola ou complexa, com
frutos ou sem frutos. Do jeito que der.

**

Contar a história de alguém, contar a história de si mesmo,
é desenhar um pedaço do mundo. É fazer o milagre de capturar um momento, é fazer
história a partir dos pequenos e não dos poderosos.

Ressuscita-se um morto através de uma história bem contada.

**

“não há quem goste de ser número
gente merece existir em prosa”

Não sei de quem é a frase. Encontrei-a no site Inumeráveis,
que registra as histórias das vítimas brasileiras da pandemia.

Inumeráveis porque não podem ser limitados a um número (a
primeira vítima, a centésima vítima). Inumeráveis também porque esse número
ficou grande demais e não sabemos mais como dizê-lo.

**

Compreender é difícil. Manifestar indignação é, ao
contrário, muito fácil.

Por isso a barulheira em que vivemos, porque está difícil
entender tanta informação e tanta transformação. Mas gritar é moleza. A frase
completa é do italiano Paolo Rossi: “Compreender é difícil. Requer tempo e
aquisição de conhecimentos e paciência. Propor remédios ou construir programas
é ainda mais trabalhoso: demanda tempo e paciência e imaginação e criatividade
e capacidade de fazer convergir num ponto a opinião de muitos. Manifestar
indignação é, ao contrário, muito fácil.”

Rossi escreveu isso no livro “Esperanças”, em que afirma que
um certo catastrofismo é tendência desde o início do século XX. Ele cita o
libanês Nassim Nicholas Taleb: “A raça humana sofre de uma doença crônica que
consiste em subestimar a possibilidade de que o futuro se afaste do percurso
imediatamente previsto.”

Diante de cada novidade, de cada surpresa, os oportunistas e
os apressados criam teorias conspiratórias e espalham o terror. “O
comportamento apocalíptico não contempla outra saída que não seja o triunfo de
todo o Mal ou o triunfo de todo o Bem. A história é, ao contrário, um
entrelaçamento de bem e de mal, ou pior, de atos que são julgados por alguns
como bons e, por outros como maus”, diz Rossi.

“Esperanças” é um livro provocador e pacificador ao mesmo
tempo. Termina propondo que é possível viver “com uma dose suportável de
angústia” e perseverar na esperança “num mundo que, por sua natureza, é
imperfeito”. Estas últimas palavras, ele empresta de Bento XVI.

**

Abro outro livro, “A Presença dos mitos em nossas vidas”, de
Mary Midgley, que já no início fala sobre “a desvantagem do drama” algo
parecido com o que disse Paolo Rossi. Mitos são ideias que persistem até quando
já não fazem mais sentido. Alguns conceitos são atrativos porque têm uma
simplicidade dramática. Ela cita como exemplo a liberdade acima de tudo, acima
da justiça e da compaixão. “Liberdade comercial completa, por exemplo, ou
liberdade total para portar armas pode causar sérios danos e injustiças”, diz
Midgley. “Precisamos, então, suplementar o ofuscante insight original a
respeito da liberdade com um sistema de prioridades mais criterioso.” O insight
original -- neste caso, a necessidade de preservar a liberdade individual acima
de tudo – é um pensamento que foi muito útil em determinados períodos e que
pode criar problemas no período seguinte se for usado como um mito, ou seja, se
for adorado e não dosado. Ele está por trás de um debate que aflora hoje com a
reivindicação da liberdade de não usar máscaras, de não tomar vacina. É a
liberdade individual desobrigando o cidadão de sua responsabilidade com a
comunidade. É o mito como justificativa para negar a realidade do que chegou de
forma imprevista, para não mudar a rotina, para não estudar e refletir.


Nestes dias, nada mais é comum ou ordinário

Com menos
eventos acontecendo nas nossas vidas, com dias mais parecidos entre si, temos
menos parâmetros para nos localizar no tempo. Quando lembro de algo que fiz,
alguma conversa que tive, até um livro que li, me pergunto: isso foi durante a
pandemia? Foi este ano mesmo? Tudo que “aconteceu” parece ter acontecido antes.

Algo que vivi
em março parece um passado remoto.

Em abril, as
pessoas estavam agitadas.

Em maio, os
esperançosos diziam “tá acabando!”

Em junho,
muitos desabafaram “chega!”

Em julho
todos os registros mostraram que “chega” coisa nenhuma.

Em agosto,
nos resignamos e torcemos.

O futuro
continua à frente. A vida segue, ainda que diferente. Não há mal que dure para
sempre. Não há pandemia que dure para sempre – isto não é pensamento mágico; é
a história da ciência quem diz. Mas por enquanto, é a pandemia que formata
nossos dias.

***

No escasso
registro de novidades, a antecipação da primavera merece ser notada. Com pouca
chuva, as plantas se apressam em florescer e garantir a disseminação de suas
sementes. Os vegetais sabem que se a seca se prolongar, morrerão. Então,
jasmins e glicínias antecipam suas floradas, violentas de tão perfumadas. A
floração do jasmineiro está tão adiantada que deve acabar nos próximos dias. A
glicínia tem cachos de botõezinhos. Hoje vi frutinhas pequenas na amoreira. Normalmente
é em setembro que aparecem.

***

Instalei um
comedor para passarinhos no quintal. Olho para ele dez vezes ao dia para ver se
tenho visitas, se alguma criatura plumada saboreia as frutas que deixei lá. Até
este momento em que escrevo, só vi um sabiá, o pássaro mais comum da minha
vizinhança. Aliás, o mais comum nas cidades brasileiras. Não foi uma surpresa,
portanto. O sabiá canta em Curitiba como cantava nas palmeiras de Gonçalves
Dias. Minhas expectativas são altas. Espero ver canarinhos amarelos e tucanos
de bico verde. Sei que eles estão por aí, mas ainda não aceitaram meu convite
para o banquete de mamão, banana e laranja.

***

Sinto falta
de ver um filme no cinema, de circular em outra cidade que não a minha. Sinto
falta de tomar café no Mercado Municipal.

***

Estou
gastando menos porque saio muito pouco e, consequentemente, não vivencio o
impulso das compras, a provocação das vitrines. Bom para meu bolso, ruim para
os comerciantes. Afinal, não sou só eu que estou nesta situação. Por isso não
preciso ler estatísticas para saber que a vida dos comerciantes está difícil.

***

Vendedores
ambulantes estão por toda parte. Compro deles, qualquer coisa. Balinhas, mexericas...
É tanta mexerica que já fiz suco e bolo da fruta. Tudo muito bom. Mexerica é
como sabiá, está por toda parte e merece nosso respeito.

***

A
consciência de que a vida de tantas pessoas está ficando mais difícil porque
falta trabalho e dinheiro é a segunda nuvem negra sobre esses dias. A primeira
é o vírus em si.

***

Dois
vizinhos morreram recentemente. Dona Felicitá e seu Romualdo. Não foi por causa
do vírus. Em tempos normais, eu teria ido nos velórios. Dá uma sensação de que
fiquei devendo algo para aquelas famílias amigas.

 ***

O último
encontro com amigos no sábado de carnaval, o dia passado no Quartelá, um almoço
na cidade da Lapa com o filho, a visita ao meu amado tio que mora em Campo
Mourão. Quem diria que esses passeios despretensiosos se tornariam os grandes
momentos do ano, as grandes aventuras?

***

Me emociono
com as palavras da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiêvitch, ao falar de
Chernobyl: “Escrevo os relatos dos sentimentos cotidianos, com palavras
cotidianas. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas
comuns. Mas aqui nada é ordinário...”

Exatamente!

A vida
cotidiana, a nossa vida, as palavras... a aparência do mundo e os nossos
recursos para viver nele e retratá-lo continuam os mesmos. Mas nada é ordinário
nesses dias. Nosso cotidiano é como uma peça de porcelana quebrada e remendada.
Parece normal, mas o encaixe não é perfeito. Algo está ligeiramente fora do
lugar. 

Svetlana
Aleksiêvitch – que escritora fantástica! – está falando de um lugar onde houve
um acidente nuclear. Ninguém estava preparado para aquela situação em que o
inimigo é a radiação que “não se vê, não tem cheiro nem som”.  Em um trecho lindo, ela descreve o que vê em
torno de Chernobyl: “...os jardins floresciam, a relva brilhava alegremente à
luz do sol. Os pássaros cantavam. Um mundo tão... familiar.”

***

Se o ser
humano tem um estabilizador interno, que vai nos ajustando às mudanças que
encontramos no curso da vida, este dispositivo tem trabalhado demais. Nos
últimos anos, ele opera o tempo todo, principalmente para quem tem mais de 30
anos (uso esta idade como uma referência, pode ser um mais ou menos). Quem é
mais jovem está se ajustando ao mundo pela primeira vez. Os mais velhos já se
ajustaram várias vezes e, a cada mudança, precisam se calibrar. É a calibragem
que me refiro Desde a forma de falar, do que é permitido pela sociedade e o que
não é, o que fazemos no dia a dia (para nos informar e para contatar amigos,
por exemplo), tudo tem mudado com muita frequência. Não uma vez, mas várias.

A pandemia é
um grande buraco na estrada, que nos faz sacolejar, que desestabiliza. Nosso estabilizador
interno está trabalhando o tempo todo.

***

Algumas
pessoas dizem que estão registrando por escrito a experiência de viver uma
pandemia. Fazem muito bem. Esquecemos muito, principalmente os pequenos fatos
do dia a dia e boa parte dos sentimentos que experimentamos. Um dia, tudo isso
parecerá fantástico como um pesadelo sem pé nem cabeça. Inacreditável.

***

Do que você
mais sente falta? Qual a mudança de hábito que mais o incomoda?

Já se fez estas
perguntas? Respondê-las não é difícil.

“Sinto falta
das festas de família.” “Sinto falta de conviver com meus filhos.” “Sinto falta
de sair em viagem para qualquer lugar.” “Não sinto falta de nada porque tudo de
que preciso está aqui comigo.”

Pronto! Aí
está o retrato da nossa alma, de quem somos e do que necessitamos.


Como dizíamos antes disso tudo começar

O professor
Gaetano Salvemini entra no anfiteatro da universidade de Florença. É calvo, usa
barba e bigode brancos bem aparados e óculos de lentes redondas. Veste terno e
gravata. Encara seus alunos do curso de História e diz: “Como eu estava dizendo
na última aula...”

Quantas vezes,
em quantos cantos do mundo, professores usaram estas mesmas palavras para abrir
uma aula?

No caso de
Salvemini, a escolha dessa frase foi tão extraordinária que se tornou parte de
sua biografia. Por quê? É que a última aula do professor Salvemini havia sido interrompida
mais de 20 anos antes. Em 1928, depois de ser preso e perseguido pelo governo fascista
ao qual se opôs em livros e artigos, ele se exilou nos Estados Unidos. Naquela
manhã de 1949, estava de volta e, talvez para marcar a retomada de uma
trajetória -- dele e da Itália -- interrompida pelo fascismo e pela guerra, ele
usou essa frase tão cotidiana para um professor: “Como eu estava dizendo na
última aula...” É como se dissesse: “Me arrancaram daqui, puseram minha geração
no campo de batalha, jogaram anos da nossa vida no lixo, mas nós sobrevivemos e
retomamos do ponto onde estávamos.” Como se todos aqueles anos escuros, aquele
pesadelo de dimensão mundial, tivesse sido parênteses abertos e depois fechados
na vida que pulsava dentro da sala de aula.

O
historiador português Rui Tavares conta essa história de Salvemini e faz uma
ressalva. Os jovens estudantes que estavam no anfiteatro da Universidade de
Florença podem ter entendido a frase escolhida do professor Salvemini como um
gracejo. Mas se escavassem em torno das palavras descobririam que não foi um
gracejo, mas sim um ato de memória. A frase “como eu estava dizendo na última
aula...” era uma referência à frase em latim “dicebamus hesterna die” ou “como
dizíamos ontem”, que havia sido usada em várias ocasiões semelhantes àquela.

A primeira e
bem documentada ocasião foi quando o frei Luiz de Leon, um intelectual espanhol
perseguido pela Inquisição, voltou à sala de aula. Ele havia sido preso
enquanto dava uma aula na universidade de Salamanca. Quatro anos depois, ao
sair da prisão, abriu sua primeira aula assim: “como dizíamos ontem...”. Isso
aconteceu na época em que, por aqui, os portugueses exploravam pau-brasil.

Pouco antes
de Salvemini, outro historiador, Norberto Bobbio, também perseguido pelo
fascismo, ao voltar à Itália após o exílio, iniciou sua primeira aula na
universidade de Roma com essas palavras: “como dizíamos ontem...”

Em Paris,
após sobreviver à guerra e ao Holocausto, Gustave Cohen, um historiador judeu, voltou
à Sorbonne e abriu sua aula com “dicebamus hesterna die”.

Rui Tavares argumenta
que o uso desta frase como uma piada de historiador só funciona se acontecer no
momento certo, ou seja, depois de termos sido desviados do nosso caminho por um
ataque, uma injustiça, uma tentativa de silenciamento. Depois de termos ficado isolados
enquanto coisas terríveis aconteciam lá fora. Mas só depois que tivermos
retomados o nosso caminho. Gaetano Salvemini esperou 20 anos para fazer a
piada.

Me parece
que nós, humanidade, estamos em um intervalo doloroso, com nossas vidas
suspensas por uma força maior que, um dia, venceremos. Quando as crianças e os
jovens voltarem às salas de aula, os professores poderão recebê-los assim: como
dizíamos na última aula...

Me parece
também que o Brasil está há alguns anos se debatendo para não afundar de vez em
um lamaçal que nos impede de seguir em frente. Apenas nos debatemos e vamos
sobrevivendo, levando a vida sem de fato vivê-la, desnorteados a cada dia com a
falta de um projeto comum de país, enfraquecidos por termos o egoísmo e a
vaidade como valores-mestres, atacados por um conservadorismo tacanho que se
baseia na ignorância. Quando isso tudo acabar – porque, afinal, tudo acaba –
alguns de nós dirão “como dizíamos ontem...” e tentarão recuperar o tempo
perdido.

***

Rui Tavares,
que é colunista do jornal O Público, de Lisboa, está escrevendo um livro que
deve receber o título de “Agora, agora e mais agora?”. A explicação que ele dá para
o título é curiosa: sua bisavó sofreu um derrame e perdeu a capacidade de falar.
Muito tempo depois, conseguiu dizer uma palavra: agora. Sem ter escolha, expressava
tudo o que queria dizer assim: “Agora agora e mais agora?” Usava a mesma frase
para raiar com os netos, para se mostrar satisfeita ou para reclamar da vida.
Só mudava a entonação, trocando a interrogação por uma exclamação ou por
reticências ou pelo ponto final.

O tema do
livro do historiador é o presente, o atual estado das coisas. Mas como
historiador, precisa fazer isso olhando para o passado. Ele quer falar do agora
em que estamos hoje trazendo de volta os agoras que ficaram para trás.

***

Quando o
professor Gaetano Salvemini deu aquela famosa aula em Florença, seu enteado
Jean, a quem ele amava como um filho, já tinha sido condenado à morte e
executado, em Paris. Jean Luchaire foi um francês que aderiu ao nazismo e apoiou
a ocupação da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra para desespero do
padrasto.

***

O frei Luis
de Leon ficou cinco anos preso e durante este tempo escreveu poemas até nas
paredes da masmorra. Dizem seus biógrafos que o que fez dele um alvo da Inquisição
não foi alguma forma de radicalismo, mas o contrário. Era um humanista e tudo
que era humano lhe interessava: poesia, música, a relação com a natureza, a
filosofia. Traduziu para o espanhol o Cântico dos Cânticos, versos do Antigo
Testamento que eram mal vistos por serem sensuais. Traduzir as Escrituras,
naquela época, era pisar em terreno minado. Protestantes traduziam de um jeito.
Católicos de outro. Luis de Leon era um frade católico, mas queria traduzir do
seu jeito, diretamente do hebreu. Escreveu um livro intitulado “Os nomes de
Cristo”. Atrás de cada nome (Salvador, Filho de Deus, Senhor, Jesus) ele viu
uma história. Cada nome é um novo sinal. Cada nome indica um caminho possível
para a salvação.


Sonhando com outro país

A vida não
anda fácil para quem escreve crônicas. A crônica é um gênero textual que nasceu
nas páginas dos jornais brasileiros na época em que os jornais tinham páginas e
as páginas tinham leitores. O assunto pode ser qualquer um, o que conta é a
abordagem, que não é jornalística nem analítica, mas sim pessoal, como na carta
endereçada a um amigo. Os cronistas são aqueles que escrevem sobre passarinhos
– fama que deve ter tido origem nos textos de Rubem Braga, coroado o Rei da
Crônica e que gostava de pássaros e escrevia com frequência sobre eles.

Nestes dias
está difícil para mim falar de passarinho ou dos vizinhos ou do meu gato e do
meu cachorro. Em primeiro lugar, porque com o isolamento social as idas e
vindas estão limitadas e o que eu vejo em um dia costuma ser o mesmo que eu vi
em todos os dias anteriores. Em segundo lugar porque o Brasil não ajuda. O
Brasil está baixo-astral, pesado, sofrido e louco. Por isso meus olhos foram
atraídos por um título na estante: “O mais estranho dos países”. Autor: Paulo
Mendes Campos, cronista que admiro.

“E o Senhor
disse:

Agora
criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá
no concerto das nações pelo nome de Brasil.”

A crônica de
PMC conta a história do Brasil a partir de suas características mais poéticas e
mais desastradas. “E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.”
Publicada na revista Manchete há 54 anos, reflete desânimo com as confusões que
os brasileiros fazem e que nos mantém nessa valsa eterna: um passo para frente
e um passo para trás. Mas não há amargura nesse desânimo, há humor, candura.
Não éramos um caso perdido, éramos um caso estranho. “E criarei para o Brasil
oradores eloquentes; a estes darei a ambição, mas não a sabedoria; e criarei
uns poucos homens sábios; e a estes não darei nem a ambição, nem a eloquência.
A fim de que as discussões se prolonguem e que o povo se perca pela boca dos
oradores.”

Todos os autores
da época de ouro da crônica seguiam nessa toada. O Brasil era pitoresco até aos
olhos dos brasileiros. Os cronistas, que conheciam outros países e liam outros
autores, enxergavam o subdesenvolvimento do Brasil. Por muito tempo se falou em
subdesenvolvimento. Agora não mais. Por que agora somos desenvolvidos ou por
que nos acostumamos tanto com a mistura de progresso e pobreza que tomamos isso
por normal? Sim, continuamos subdesenvolvidos. Também continuamos pitorescos
com nossa alegria fora de hora e de lugar, com o impulso para a confusão e para
a falta de método. Continuamos os mesmos, o que significa que continuamos não
valorizando a vida daqueles que não fazem parte da nossa família. Nossa família
é sagrada, a sagrada família. As outras famílias são agrupamentos falhos e
descoloridos que enxergamos mal e porcamente. Se um ou outro membro desse
agrupamento desaparecer, morto por bala perdida, novo vírus ou velho vírus ou
despencando do alto de um prédio de rico onde o pobre é convidado a usar o
elevador para encontrar seu fim, que diferença faz? Há tantos de nós, há tantos
brasileiros igualmente dispensáveis. A morte nos ronda e nosso jeito de viver
como “irmão do vento” nos empurra para as ruas, até para festas, incapazes de
entender a disciplina de uma estratégia de combate a uma pandemia.

***

Esta é a
pergunta que eu gostaria de fazer ao presidente da República: “Qual a sua estratégia
para proteger os brasileiros da pandemia?”

Esta é a
pergunta que o Brasil deve fazer para ele e, pacientemente, ouvir a
apresentação do plano que, desejamos, tenha sido cuidadosamente elaborado.

Se não tem
plano, au revoir senhor presidente. Passe o bastão para quem possa fazer
esse mínimo que um país precisa nesses dias, que é ter diretrizes para proteger
os cidadãos. Proteger os cidadãos, não jogar os cidadão nas covas. Dez mil
brasileiros a menos, que diferença faz? Se forem quarenta brasileiros a menos,
aí faz diferença?

***

Em um exercício de história virtual, aquela que nunca aconteceu porque um fato-chave levou a um caminho e não a outro (por exemplo: o que teria acontecido na Europa se aquele carpinteiro alemão tivesse conseguido matar o Führer em 1939?), me pergunto como estaríamos vivendo a pandemia se o presidente do Brasil fosse outro -- ou outra -- e que quisesse proteger os brasileiros. Muito cedo, ele teria chamado seu gabinete e ordenado que fossem identificadas as prováveis rotas e formas de contaminação e que se tomassem providências para neutralizá-las. Ele teria ido à tevê para dizer que todos devemos fazer o isolamento social da forma mais radical possível. Ele teria conversado com a oposição. Ele teria visitado hospitais. Teria se encontrado com familiares de vítimas. Teria conversado com empresários e trabalhadores, mesmo os que não bancaram sua campanha. Teria sofrido com a dificuldade para definir quando retomar a vida normal.  Teria voltado à tevê para dar bronca nos brasileiros que não levaram a sério suas orientações para ficar em casa. Sim, porque o brasileiro continuaria sendo o irmão do vento e muitos não acreditariam no perigo e reclamariam do exagero e fariam festas e beberiam nas calçadas e jogariam futebol na praia. Meu Brasil brasileiro é assim.

Mas como seria se houvesse ao menos uma diretriz nacional, a indicação de um norte e não o esforço constante para provocar e gerar o caos? Até que ponto seríamos tão fracassados e confusos como estamos sendo agora se a autoridade máxima fizesse o mínimo que se espera de quem detém a autoridade máxima e não exatamente o oposto? Nunca saberemos e, no entanto, é nessa realidade alternativa que podemos vislumbrar um país menos ridículo e cruel.


O medo testa o caráter

Quando uma
partícula intrometida e não identificada se alojou no céu da boca e me obrigou
a tossir para expulsá-la, meu cérebro disparou o alarme e me pus a traçar uma
estratégia. Se aquela tosse era sintoma de covid-19, eu precisava agir para
proteger os meus. Usar máscara dentro de casa até ter o diagnóstico, me afastar
deles... O que mais? O trabalho mental foi interrompido pelo meu filho. O som da
minha tossezinha seca desencadeou nele a mesma reação que havia desencadeado em
mim: medo e uma necessidade urgente de proteger.

“É só uma
tosse, algo na faringe...” – expliquei.

Meu filho
continuou parado na porta. Naquela tarde, ele tinha trabalhado atendendo o
público. “Tenho medo de trazer o vírus pra você e pro meu irmão, mãe.”

O que ele
deve fazer? Demitir-se? E ficar até quando dentro de casa, sem fazer nada? Aos
21 anos!

Tenho 53
anos, nenhum problema de saúde, o peso é maior do que eu gostaria, mas nada que
exija cuidados. Nem um momento me passa pela cabeça que a epidemia seja uma
ameaça para minha sobrevivência. Mas é uma ameaça para a minha felicidade, para
minha sanidade, por causa dos meus filhos, ambos portadores de doença
respiratória crônica.  

Vejo muitas
pessoas na mesma situação que eu. Não somos as presas preferenciais do vírus,
mas as pessoas que amamos estão cercadas por uma linha imaginária vermelha que
as destaca sem as proteger: grupo de risco.

***

O filósofo
alemão Peter Sloterdijk fala em “coimunidade”, um compromisso individual com a
proteção mútua. Eu me cuido por eles, eu me cuido por você. Esta é a nova
maneira de estar no mundo. Ou pelo menos é assim que tem que ser.

***

Também é de
Sloterdijk uma tentativa de resposta interessante à questão: o mundo pós-pandemia
será diferente?

Quando penso
nesta pergunta, desejo que a resposta seja sim. Que a força do consumismo e a
velocidade da vida contemporânea diminuam, abrindo brechas no materialismo, gerando
uma mentalidade mais generosa. Mas vejo a superficialidade e o consumismo tão
arraigados no espírito dos nossos dias que é difícil acreditar que irão embora.

Sloterdijk é
mais otimista. Ele diz que o mundo hoje é uma gigantesca esfera de consumo que
se mantém graças a uma “atmosfera frívola” que todos nutrem sem grande
resistência. Para desejar acima de tudo consumir, ainda que isso signifique
sacrificar nosso tempo, nossos valores e nosso planeta, temos que ser frívolos.
“O vínculo entre a atmosfera frívola e o consumismo foi rompido. Todo o mundo
espera agora que esse vínculo volte a ser reconectado, mas vai ser difícil.
Depois de uma disrupção tão grande, o retorno aos padrões de frivolidade não
será fácil” ele disse em entrevista ao El País.

***

A
expectativa de mudanças após a pandemia está em toda parte. Manifesta-se mais
na Europa do que no Brasil, talvez porque lá a experiência do isolamento social
tenha sido mais forte. Aqui, muitos que podem se isolar tentam viver como se
nada estivesse acontecendo e outros tantos não têm a possibilidade de ficar em
casa. Aqui, vivemos em mundos paralelos que se chocam, mas não se misturam.

A espera por
alguma transformação se explica pelo gigantismo do que estamos vivendo. Como
encarar uma ameaça global e não aprender nada? Como não interpretar uma
pandemia e suas consequências como sinal de que algo está fora de ordem, de que
algo na forma como vivemos precisa ser revisado e reparado? Ou, visto por outro
ângulo, como não reagir a uma ordem social que sacrifica tantos?

**

Um dos meus
autores favoritos, o turco Orhan Pamuk, trabalha há quatro anos em um romance
sobre o surto de peste bubônica que atingiu a Ásia em 1901. O título do livro
será “Noites de Peste”.

Pamuk conta
que, em livros de história e de literatura, encontrou semelhanças nos relatos
de epidemias, por mais distantes que estejam uns dos outros no tempo e na
geografia. “A resposta inicial para o aparecimento de uma pandemia sempre foi a
negação. Autoridades locais e nacionais sempre foram lentas para reagir,
distorceram fatos e manipularam dados para negar a existência do problema”, ele
escreveu em um artigo para o New York Times. Um exemplo citado por ele está no
livro “Os Noivos”, de Alessandro Manzoni, publicado no Brasil por várias
editoras ao longo dos anos: o governador de Milão ignora a peste bubônica e mantém
a festa de aniversário que oferecerá ao príncipe, juntando convidados,
empregados e pulgas contaminadas em uma orgia sanitária.

Quanto à
população, Pamuk nota que os registros históricos e literários identificam duas
reações recorrentes: a revolta contra o destino que submete uma geração ao
terror que surge do nada (“por que agora?”, “por que comigo?”) e a disposição
para acreditar em rumores e notícias falsas.

***

Com tanta
facilidade que temos hoje para nos informar, rumores e notícias falsas poderiam
não vingar. Mas vingam e prosperam. A força da mentira revela outra
característica do nosso tempo: a disposição para apenas ler e ouvir aquilo que
se encaixa na nossa visão de mundo, a levar a sério só a informação que poupa
aqueles em quem confiamos e desmerece os que já eram nossos inimigos.

***

Pamuk observa
com lucidez: neste ano de 2020, nosso medo é alimentado menos pelos rumores e
mais pela informação precisa a que temos acesso. Quando olhamos um mapa salpicado
com bolinhas vermelhas que indicam a presença do vírus, quando vemos gráficos
com linhas que apontam para o alto, como para um céu sem limite, não temos para
onde correr.

O medo pode
levar ao cuidado ou à negação.

O medo testa
o caráter.

Muitos estão
fazendo sacrifícios, estão empenhados em ser firmes, alguns trabalham mais do
que nunca, alguns doam mais do que jamais haviam doado, alguns dão vazão à
generosidade e se sentem mais fortes assim. Em tempos estranhos, é melhor olhar
na direção dessas pessoas porque é lá que está a luz.


Isso tudo vai acabar e nos encontraremos de novo

Desagrada-me o clima de “nós” e “eles”. Nós, os saudáveis; eles, os que estão nos grupos de risco. Alguns reforçam a divisão na busca de um conforto, do alívio que sentem ao enxergar um limite para o vírus, uma fronteira para o seu avanço. Dentro dos grupos de risco é que o vírus é perigoso. Para o restante da população, a vida segue. Não cabe julgar quem pensa dessa forma. Mas este pensamento gera posturas arriscadas dos que se consideram imunes. O pior é que desmerece a vida de quem tem mais idade ou tem uma doença crônica. Como se em toda família não houvesse várias pessoas nessa situação. Se não morando na mesma casa, ainda assim parentes próximos, como pais, avós, cunhados e primos. Cada perda provocada pelo vírus em alguém dos grupos de risco vai doer nos corações de muitos outros.

**

A
sensação de imunidade geralmente vem de antes, já acompanhava a pessoa nos
tempos de normalidade. Ela não fuma, ela “se cuida”, ela teve a sorte de nascer
com uma genética favorável. Ela é jovem ou pelo menos não é idosa. É poderosa.

**

O
presidente Bolsonaro teve a sorte de (1) não ser contaminado pelo vírus apesar
de ter tido contato com várias pessoas infectadas ou (2) ter sido contaminado e
não ter adoecido. A história oficial diz que a resposta correta é a 1, mas isso
é debatível. Certamente a sorte que o presidente teve agora influencia sua
postura. Ele continua se sentindo imune e, além disso, é o tipo de pessoa que
não se põe no lugar do outro com uma história diferente da sua. Em outras
palavras, falta-lhe empatia. Se tivesse adoecido, talvez a história seria
outra.

**

Sem
dúvida o combate ao novo coronavírus fará muito mal à economia. Aqui no Brasil muitas
pessoas estão esperneando como se fosse possível fugir dessa realidade. A
questão agora é fazer planos para a recuperação econômica. É tarefa árdua, mas
é o que todos terão que fazer: países, empresários e trabalhadores. O
presidente Bolsonaro parece apavorado com a crise econômica que ele certamente
não tem a menor ideia de como resolver. Por isso prefere o caminho fácil: negar
o problema. Corremos o risco de não resolvermos nada, nem a economia nem a
saúde.

**

Uma
crise como esta nos faz pensar no papel do Estado: com 12 milhões de
desempregados e a maior parte da população sem plano de saúde, o que seria do
Brasil sem o SUS? O que seria do Brasil sem os cientistas que trabalham nos
serviços públicos de pesquisa, como o Lacen, aqui no Paraná, e o Instituto
Osvaldo Cruz? Como seria se o poder público não fizesse a transferência de
renda, ainda que com valores baixos?

**

A
situação extrema também mostra que precisamos de uma administração pública
eficiente e operante. Como fazer funcionar a megaoperação para pagar a ajuda de
600 reais se não houvesse funcionários que conhecem a máquina do Estado? Como monitorar
a ocorrência da doença sem um serviço de vigilância sanitária proporcional ao
gigantismo do país?

**

As
prefeituras, no nível mais básico do Executivo, ganharam uma importância
gigantesca no controle da pandemia. Na prática, são os prefeitos que definem
orientações e convencem os moradores dos municípios a segui-las. Também estão
muito mais sujeitos à pressão. Precisam ser valentes.

**

Esta
crise acontece em um momento em que faltam líderes dispostos a tomar a
dianteira. Por isso faltam palavras de incentivo. Palavras de incentivo podem
ser duras como mostrou Churchill e sua promessa de “sangue, suor e lágrimas”
para os britânicos na Segunda Guerra Mundial. Mas elas apontam para uma
direção. Estamos todos como baratas tontas sem saber para onde correr, o que
pensar, o que projetar no futuro. Vamos tateando as paredes de nossas casas
transformadas em bunkers, cegos pela preocupação e pelo susto com o gigante que
caiu sobre nossas cabeças e que se debate, rolando de um lado para o outro e
fazendo estrago.

**

Uma
mensagem de conforto pode trazer o básico: isso não vai durar para sempre. Mas
também indica uma linha de ação: “todos temos responsabilidade”. É o que se vê
nas falas da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arden. Quando ela fala
algo simples como “fique em casa e salve vidas”, está dizendo o que fazer e com
que propósito. Quando Jacinda ecoa em suas palavras o que os neozelandeses
estão pensando (“situação impensável”, “ansiedade”, “medo”), ela está se
conectando com eles. Vi alguns vídeos da primeira-ministra se dirigindo ao seu
povo. Suas falas são diretas, as informações transparentes. Está dando certo.

**

A
rainha Elisabeth II fez o que tinha que fazer. Dirigiu-se a seus súditos com
palavras de incentivo. O trecho duro, mas sutil, de sua mensagem foi quando
alertou: “Espero que nos próximos anos todos nós possamos sentir orgulho da
forma como agora estamos respondemos ao desafio.” Com quase 94 anos e
testemunha de grandes crises nacionais, ela sabe que a pandemia de 2020 vai um
dia virar História e que todos seremos julgados pelo que fizemos durante a
crise.  A fala da rainha fez bem aos britânicos
e foi “emprestada” por pessoas do mundo inteiro que estavam carentes de esperança.

**

O
discurso de Elisabeth II terminou com uma frase singela: “Nós iremos nos ver de
novo.” Cada palavra naquele discurso foi cuidadosamente escolhida para carregar
muito significado. “Nós iremos nos ver de novo” é o título e o refrão de uma
canção lançada durante a Segunda Guerra Mundial para animar os soldados e suas
famílias, separados pelo conflito e que talvez nunca se reencontrassem. É a
trilha sonora de uma tragédia. Foi usada em vários filmes, de “Doutor Estranho”
e “T2: Trainspotting” até em um episódio dos Simpsons. Você certamente ouviu
“We will meet again, I don’t know where, I don’t know when, but I know we will
meet again some sunny day...”

***

Avós
separados de seus netos, pais separados de seus filhos, amigos separados de
amigos, uma hora isso acaba e nós iremos nos encontrar novamente para o
churrasco de domingo, para a festinha de aniversário do bebê, para a taça de
vinho ou para o café no Mercado Municipal. Em resumo, como disse Elisabeth II,
iremos nos ver de novo.


A morte do porteiro

Ilustração: Felipe Mayerle

Você se sente como eu, perplexo diante da situação nunca
vista, mais espantado que temeroso?

Não que eu subestime a pandemia, de forma alguma. Apenas a
vejo, até este momento em que escrevo, se aproximando dia após dia, mas ainda
distante de mim. Por enquanto o que ocupa minha mente é a surpresa com a onda
que avança, tomando o planeta.

Você também se espantou com a cena do papa caminhando pela rua
deserta de Roma? Ele estava a caminho da igreja onde rezaria por nós, talvez
pediria por um milagre. Se não fosse pelo ciclista que passava no momento em
que a foto foi feita, seria uma imagem dos fins dos tempos. O ciclista,
investido de sua banalidade, reafirma que estamos no nosso velho mundo, que a
vida segue.

A primeira vítima do coronavírus no Brasil foi um porteiro
aposentado. A primeira vítima da peste que assolou a cidade de Orã no livro de Albert
 Camus foi o porteiro do prédio onde
vivia o narrador.

Que livro maravilhoso, A Peste! Neste momento, parece
que fala de nós. Não digo que Camus profetizasse. Eu é que uso o livro como
espelho buscando nele uma narrativa que me ajude a processar a realidade que me
cerca. É uma profecia ao contrário, uma projeção feita pelo leitor em busca de
respostas.

“A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim desse
período cheio de sinais desconcertantes e o início de um outro, relativamente
mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a
pouco, em pânico.”

É Camus falando de seus personagens diante da peste que se
espalha por Orã. Poderia ser um de nós comentando o Brasil desta semana.

“Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem dúvida,
teriam vencido.” Mas agora os hábitos precisam ser derrubados, o isolamento se
impõe. Passamos a ser aqueles que veem o mundo pela janela.

Não tenhamos vergonha de observar qualquer movimento lá fora.
Nada de se esconder por trás da cortina, com medo de ser notado. A janela é
nossa aliada.

***

Olhar pela janela é uma ação mal afamada. Abelhudos,
desocupados e medrosos é que olham pela janela. Uma grande injustiça que temos
a chance de consertar. Por trás do preconceito, a crença de que quem observa o
mundo pela janela não tem coisa melhor para fazer. Devemos estar ocupados trabalhando,
sempre. Ninguém diz “tive um grande dia olhando pela janela”.

Me corrijo: tenho um amigo que revela ter grande prazer
observando a rua onde mora e os transeuntes de aparência banal, mas que -- quem
sabe? -- carregam segredos, pecados e paixões que ele nunca conhecerá.

Numa sociedade construída sobre outras bases talvez as pessoas não só passariam mais tempo à janela como compartilhariam suas impressões. Se temos um mundo todo lá fora, com árvores, pássaros, cães vira-latas, vento, sol e chuva, por que relegá-lo à banalidade e nunca o desfrutar com calma e atenção? A resposta é: temos que nos manter apressados e ocupados para parecer importantes. Ocupados com trabalho, com a produção de alguma coisa, capazes de afirmar: tempo é dinheiro.

“A única coisa que me interessa, respondi-lhe, é encontrar a
paz interior” – é Camus, novamente. Camus que fez literatura como quem faz
filosofia. Sem a possibilidade de mantermos a agenda cheia, vem a chance de
experimentar outros hábitos e rotinas. Trabalhar até, mas quem sabe resta tempo
para olhar lá fora buscando nada, experimentando essa forma de meditação em pé,
testando uma rebelião inocente contra as demandas urgentes e geralmente
insignificantes que ocupam nossos dias.

“Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo
ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram
impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham
opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os
deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre
enquanto houver flagelos.”

***

Não entenda as citações que uso aqui como sinal de preguiça
da minha parte, mas de generosidade. Dou-lhe o que há de melhor perto de mim,
que é esta obra de leitura fácil e ao mesmo repleta de ideias inspiradoras.

“Este mesmo flagelo que vos aflige vos eleva e vos mostra o
caminho.”

***

Falar ao telefone é um hábito fora de moda, já extinto entre
as gerações que vivem com um telefone na mão. O aparelho deles é usado de
outros modos e para outros fins. Preste atenção: uma pessoa de 20 anos jamais
usa a palavra telefone para designar o aparelho do qual nunca desgruda,
mas sim a palavra celular.

Vem da Espanha, país cuja população está mergulhada no
confinamento, a notícia de que as pessoas voltaram a falar ao telefone.
Inclusive, no telefone fixo, redescoberto nesses dias provavelmente porque é
mais confortável para longas conversas do que o celular.

Leio no jornal El País o que diz o porta-voz de uma companhia
telefônica: “Nestes momentos difíceis, todos queremos escutar a voz de nossos
familiares e das pessoas importantes para nós, comprovar que estão realmente
bem, sobretudo [a voz] dos mais velhos, que são os que continuam usando o
telefone fixo.”

Aqui está outra explicação para o crescimento das chamadas
por telefone fixo: é a forma possível de contato com idosos que não estão
saindo de casa nem recebendo visitas. Muitos deles não usam celular.

As tecnologias de comunicação é que fazem a nossa situação
diferente daquela em que se encontram os personagens de A Peste. Aqui
trocamos ininterruptamente informações verdadeiras e falsas, apoios e tolices,
humor e pesar. Aqui a cidade é quase planetária porque está interconectada.
Quase, sempre quase, porque não saberemos de fato como se sentem os italianos,
os chineses ou os espanhóis enquanto não vivermos o que eles vivem. Números
assustam, mas não substituem a experiência.

“Mas o que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais.”

***

Exagero. Quem não se perguntou pelo menos uma vez se há
exagero na reação ao coronavírus? Precisa mesmo parar minha cidade? Meu país?
Parar o mundo?

Há várias explicações para esse questionamento: ceticismo em
relação a ciência; descrença nos governos; resistência a qualquer mudança na
vida cotidiana; foco restrito na atividade econômica; tendência em acreditar em
teorias conspiratórias. E tem as razões que, como um mosquito minúsculo e
incômodo, picam todos nós em algum momento: espanto diante do gigantismo dos
fatos, surpresa diante do nunca visto antes; e o distanciamento que nos faz
pensar “não vai acontecer comigo”.

“No entanto, muitos continuavam a esperar que a epidemia
cessasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por consequência,
não se sentiam ainda obrigados a nada.”


Onde mora o perigo cresce também o que salva

Para quem nasceu até o final dos anos 70, o século XXI era
“o futuro”. Outro século, afinal, e um que veria todas as fantasias tecnológicas
florescerem. Filmes e livros nutriam nossas expectativas, alguns movidos pelo
otimismo e outros pelo medo. Não estavam errados nem uns nem outros.

O futuro em que vivemos hoje se revela surpreendente e
radical a cada dia. Nada do que era sólido no nosso cotidiano resiste: nem
hábitos, nem empresas poderosas, nem dogmas ou certezas.

Há sempre algo incontrolável nos rumos que as coisas tomam.

Os que não digerem bem os novos costumes arrotam para se
livrar do desconforto. Pelo arroto manifestam duvidar da ciência, da solidariedade,
da democracia duramente conquistada. Também há os que manifestam desconforto
com soluços, estes bem menos barulhentos. Reagem à fúria da máquina se apoiando
em algum tipo de nostalgia, talvez lendo velhos livros de papel, talvez se negando
a usar um celular e sempre resistindo a postar selfies em uma rede social.

Escrevendo na primeira metade do século XX, Heidegger notou
que o mundo humano se transformava em um universo técnico, ao qual nós humanos estamos
presos como peças de uma engrenagem. Ele descreveu um cenário em que a expansão
da técnica constitui a dimensão planetária de uma forma de razão calculadora. O
perigo? É que esta razão calculadora, onipresente e onipotente, faça do ser em
si algo irrelevante.

Não conheço a obra do filósofo alemão o suficiente para
compartilhar mais sobre seus escritos. Falo o que entendi, que é pouco. Mesmo sendo
pouco me causa espanto. Há quase cem anos, ele localizou o elemento mais
poderoso que os humanos introduziram em suas vidas sem antever as consequências
e sempre crentes de que manteríamos o domínio sobre a técnica – ou sobre a
tecnologia, como diríamos hoje.

Em suas reflexões, Heidegger citou um verso do poeta Hölderlin,
alemão como ele: "Mas onde mora o perigo cresce também o que salva.” Heidegger
e Hölderlin são sempre citados juntos, o que diz muito sobre a mensagem que o
filósofo se empenhava em desenvolver. O que salva, Heidegger sugere, é a
expressão da humanidade através da sua voz, da linguagem, da poesia. De uma
expressão artística afinal, algo que só nós, seres humanos, temos necessidade
de fazer e de apreciar. Na minha compreensão, ele sugere um contraponto entre a
máquina que existe em função de algo concreto e objetivo e o ser humano que
precisa se expressar para não ser... uma máquina.

***

Como todos os brasileiros, comecei 2019 com expectativas e
apreensões em relação a nossa vida aqui no Bananão, que é como o Ivan Lessa se
referia ao Brasil. Fecho o ano com outras expectativas e renovadas apreensões. O
Bananão continua sendo um lugar perigoso. Como disse outro escritor da geração
do Ivan Lessa, o Otto Lara Resende, às vezes tenho vontade de trancar minha
matrícula de brasileiro.

Outros países estão passando por situações igualmente
desconcertantes, a ponto de a gente se perguntar o que está acontecendo neste
planeta. Que os outros também vejam o avanço de ideias de ódio, do desprezo
pela solidariedade, da retomada de diversas formas de ignorância não é consolo.
Ao contrário.

***

Se tem algo de que não podemos nos queixar é da oferta de
boas leituras nas livrarias. Citei alguns títulos em textos que fui publicando
ao longo de 2019. Leio alguns lançamentos intercalados com livros mais antigos
que esperavam sua vez na prateleira. Por coincidência, li três livros novos
agora no fim do ano. “Paletó e eu”, da antropóloga Aparecida Vilaça, que relata
sua experiência entre índios que a adotaram como parte da família (Paletó era o
apelido do pai indígena de Aparecida); “Elis e eu”, de João Marcelo Bôscoli,
que faz um registro da infância vivida ao lado da mãe Elis Regina, e “A Elite
na Cadeia”, do jornalista Wálter Nunes, uma reportagem sobre a vida dos
figurões presos pela Operação Lava Jato na Polícia Federal de Curitiba e na
Penitenciaria Central do Estado, em Piraquara. Este último é daqueles livros
que a gente lê em uma sentada. Recomendo os três. De uma forma ou de outra,
todos derrubam preconceitos e salientam o lado humano, muito humano, de seus
personagens.


A cidade e a vida

A maioria não escolhe a cidade onde mora. Apenas se deixa
ficar nela. Ou porque nasceu nesse lugar ou porque é onde a família ou o
emprego está. Adotar outra cidade, do nada? É uma ousadia.

Acho que muitos dos que dizem que amam a cidade onde vivem
também amariam outro endereço onde fossem levados pelas circunstâncias a passar
muitos anos. O tempo nos conecta aos lugares. O tempo é que é poderoso.

Felipe Mayerle

***

O etos de um lugar se torna o nosso etos. Sem nos darmos
conta, assimilamos aqueles valores e eles se tornam nossos. Acreditamos até que
nascemos com eles. Quem muda de cidade se dá conta disso. É como perder a
inocência. Para sempre se sentirá um pouco estrangeiro em qualquer lugar onde
more. Os estrangeiros são mais livres, mas pagam o preço.

***

Ouvi de um diplomata inglês: ao encontrar um estrangeiro, é mais
sensato perguntar sobre sua cidade do que sobre seu país. A cidade é uma esfera
íntima onde os sentimentos perigosos, como o nacionalismo, se expressam de
forma mais sutil. Para evitar desconforto – uma especialidade dos diplomatas – não
incite o estrangeiro a falar de sua pátria. Se quer sondar sua alma, pergunte sobre
sua cidade.

Fiz um teste com Mario, o italiano que anda por aqui esta
semana. “Mario, o que você pensa sobre Roma?” Mario me falou sobre a
grandiosidade histórica da capital italiana, especialmente sobre os vestígios
do Império Romano.

Acho que alguém que vive em uma cidade-monumento, como Roma,
carregará sempre o peso do passado gigantesco. Penso em Orham Pamuk, que coloca
Istambul, que também foi capital de dois impérios, como personagem de seus
livros. O presente e o futuro de Roma e Istambul sempre parecerão menores que
seu passado.

***

A grande urbe separa seus moradores por classe social porque
nela o mercado imobiliário é um elemento tão vivo como qualquer outro da
comunidade. Cada um no seu espaço. Na cidade pequena, há mais chances de todos
se acotovelarem algum dia, seja na rua, na escola, na igreja. Os orgulhos e
vaidades continuam lá, os preconceitos ditam aproximações e distâncias, mas
quem quiser ver o outro, verá.

Foi na cidade pequena que tive um colega de classe que era
engraxate. Fora do horário de escola, eu o via trabalhando em frente ao bar com
a caixa de madeira. Tinha 12 ou 13 anos quando morreu atropelado por um
caminhão. Marcos era seu nome. Era um bom menino.

***

Na cidade pequena se faz muita fofoca e cada pequeno evento
se torna um grande evento. Um acidente de trânsito pode render conversar por
dois dias seguidos. Na cidade de meus tios, um serviço de autofalante na praça
avisava quando ocorria um falecimento. Parece que todo mundo morava perto da
praça e que todo mundo conhecia os falecidos.

***

Na cidade pequena tem muitas mulheres perdidas. Ou pelo
menos as pessoas inventam perdições para as mulheres, que são obrigadas a
carregá-las pelo resto da vida. Havia uma mocinha bonita na minha vizinhança. Sobre
ela diziam que levava os namorados para dormir no seu quarto, no sótão do velho
casarão onde morava com os velhos pais. Eram muitos namorados – comentava-se
maldosamente. Os pais adoravam a mocinha e ignoravam suas aventuras. Eu não
entendia de onde apareciam tantos namorados e como eles subiam as escadas sem
acordar os velhinhos. Quanto daquilo era mentira? Nunca vou saber.


A morte do leitor

Morreu um homem que lia estas crônicas. Ouvi dizer, esperei
alguns dias e liguei para a viúva. “Ele tinha o hábito de recortar alguns
textos de jornais e revistas e deixar sobre o balcão da cozinha para eu ler”,
me disse ela. Daria para reconstruir a personalidade de uma pessoa pelos recortes
que ela deixou? Suponho que sim.

Foi bonito aquele compartilhamento de impressões entre
marido e mulher. Ele me disse uma vez que ela gostava de romances e quando uma
frase a tocava, lia em voz alta para ele.

O Leitor (combinei com a viúva que usaria este tratamento) descobriu
meu número em uma lista telefônica que guardava em casa, daquelas bem grossas e
que não se usa mais. Era do tempo em que os números de telefone de Curitiba
tinham sete algarismos. Só precisou acrescentar um três na frente e me
encontrou. A cada quatro ou cinco meses me procurava para contar que a crônica da
semana o lembrara de algum episódio de sua vida. Existíamos um para o outro em
apenas uma dimensão: ele como leitor e eu como cronista. Melhor assim, se ele
soubesse da minha vida talvez se decepcionasse. Se eu soubesse da vida dele,
talvez preferisse evitá-lo. Se soubermos tudo sobre as pessoas com quem
cruzamos, ainda teremos vontade de conviver com elas? E se souberem tudo sobre
nós...

O que eu sei sobre ele é que gostava de ler Manuel Bandeira,
com quem se deparou em uma padaria, no Rio de Janeiro. O Leitor sabia onde o
poeta morava, um edifício na avenida Beira-Mar, no Centro. No Rio para
acompanhar a irmã que havia decidido estudar lá, para horror de toda a família,
ele zanzava pela avenida. A irmã passava por provas e entrevistas ali na antiga
Universidade do Brasil, exatamente onde o poeta lecionava. Ele matava o tempo
observando o movimento dos estudantes, lendo e fumando na padaria. Havia
chegado no Rio zangado com a irmã e suas ideias malucas. Mal lhe dirigia a
palavra. No segundo dia estava mais relaxado. Se ficasse uma semana, ele
próprio ia acabar se mudando para lá, me contou ao telefone, rindo.

O poeta atravessou a avenida devagar, cabeça baixa. O Leitor
o identificou de longe e ficou ali, na porta da padaria, embevecido. Mais embevecido
ficou quando o senhor curvado rumou em sua direção. “Me cumprimentou quando
passou por mim!” Bandeira comprou dois pães e umas rabanadas. O curitibano
tomou coragem e se aproximou dele pensando em puxar conversa: “Senhor Bandeira,
posso... posso...”

O “senhor Bandeira” ficou esperando e nada saia da boca do Leitor.
Quanto tempo? Na memória guardada, uma eternidade. Temendo a vergonha total,
ele respirou fundo e, olhando fixo para as lentes grossas dos óculos do poeta,
falou: “Quero dar a volta ao mundo / Só num navio de vela / Quero rever
Pernambuco / Quero ver Bagdad e Cusco”.

O poeta sorriu. “Obrigado, jovem”. Desviou o rapaz paralisado
a sua frente e foi embora.

“Quase chorei de emoção”, me confessou o Leitor, 55 anos
depois do encontro. Nem eram seus versos favoritos, mas foi só o que a memória
trouxe naquele momento. Perguntei quais eram os versos favoritos. Ele sabia
vários de cor, não só porque lera muitas vezes, mas também porque fizera o
exercício de decorá-los. O Leitor decorava poemas.

Histórias como a do encontro com Bandeira em 1960 sempre
pontuavam nossas conversas. Achei que fosse um colecionador de fatos pitorescos,
que reprisava para os amigos. Pensando bem, concluo que não era isso. Como
todos nós, viveu momentos originais em meio à rotina e a banalidade dos dias.
Como alguns de nós, identificou a poesia desses momentos e por isso gostava de revivê-los.
Tinha poesia na alma, o meu leitor.


Amor de vira-lata

Ele não é o primeiro cachorro a viver aqui em casa, mas é o único que chegou por conta própria. Me seguiu portão adentro e, tal como na música, “antes que eu dissesse não, se instalou feito um posseiro dentro do meu coração”. Culpa daqueles olhos redondos como duas jabuticabas. Resistir a tanta disposição para amar, quem há de?

É um vistoso vira-lata, quase todo preto, pelo curto, pequeno.
Como ele, há muitos outros vagueando pelas ruas como lobos solitários. Acredito
que se a gente olhar de perto, vai encontrar também nos tais lobos solitários a
característica mais impressionante do meu cachorro: o olhar afetuoso. Meu
vira-lata olha para nós, moradores da casa, com um olhar de puro amor. Ele é
uma máquina de afeto e de curiosidade. Foi isso que a evolução da espécie fez
dele: um ser que existe para adorar seu companheiro, o ser humano. Os cães,
mais que qualquer outro animal, se relacionam bem com a espécie humana. Eles
não apenas convivem conosco, mas sim se relacionam mesmo, como amigos.

Ao serem domesticados, o que teria acontecido há pelo menos
15 mil anos, os cães se tornaram muito dependentes de nós. Meu vira-lata não é
bobo: sabe que eu lhe forneço alimento e abrigo. Pelo jeito sabe também (deve
estar registrado em um cromossomo) que eu não resisto àquela alegria que ele
demonstra ao me ver e – principalmente – àquele olhar. Ah, aquele olhar que é
pura estima!

Quando falo em cromossomo, não exagero. Segundo a revista Nature, cientistas que compararam o
genoma dos cachorros com o dos lobos (de quem os cães descendem) encontraram lá
razão de sobra para os primeiros serem amigáveis. A diferença entre lobos e
cães estaria nas partes do cérebro que influenciam na sociabilidade.

O que os cientistas não encontraram ainda é uma razão para a
existência de tantas raças de cães. Nenhum outro animal tem tanta variação de
características básicas como peso e altura. Por enquanto ainda vale a
explicação de que as raças são uma invenção do ser humano, que manipula os cães
para conseguir o efeito estético desejado, como orelhas compridas e moles, pelo
longo, perninhas curtas, pele enrugada, nariz achatado. O cão de raça é um
capricho humano e paga caro por isso. Tem doenças e desconfortos (como a
dificuldade para respirar dos buldogues e pugs) que um vira-lata nunca vai
conhecer. É que o vira-lata é o resultado da evolução da espécie. É um
sobrevivente – na selva (que pode ser a selva de asfalto), só os mais adaptados
sobrevivem.

Sempre me desagradou ver pessoas que humanizam demais os
cachorros, que se referem a eles como filhos, por exemplo. Lendo sobre os
vestígios mais antigos da nossa relação com eles, descubro que essa humanização
dos cães não é um fenômeno recente. Povos da antiguidade tratavam seus cachorros
como um igual fazendo para eles os mesmos rituais funerários que faziam para os
membros da família. Talvez isso se deva ao olhar doce e comunicativo, à insistência
em permanecer ao lado, em mostrar afeto. Como Argos, o cachorro que esperou 20
anos por Ulisses e, ao reencontrá-lo, finalmente morreu, meu vira-lata pula
para comemorar minha chegada como se, cada tarde, eu voltasse de uma odisseia.


O cachorro Pretinho e o melhor e o pior do ser humano

A partir de um momento na vida não parece muito sensato comemorar
o fim de um ano, mesmo de um ano ruim. É quando um a mais passa a ser um a
menos. Antes desse ponto de virada, que não acontece para todos na mesma idade,
tudo era acréscimo, soma, nunca subtração. Um ano mais experiente, um ano mais
adulto. Isso não é ruim. Só que quando o sujeito está mais pra lá do que pra cá
– vocês sabem do que estou falando – comemorar o passar do tempo é um
contrassenso. Então 2018 foi um ano pesado, mas celebrar que ele acabou... Aí é
demais. Essas referências temporais, como o calendário e o relógio, criadas
para enquadrar nossas vidas, são tão sinceras em sua crueza quanto o espelho. O
que eles dizem, está dito. Ainda que lá dentro você se sinta como um garotinho
pimpão louco para aprontar mais uma.

***

Havia uma eletricidade desconfortável entre as pessoas em
2018, aquele tipo de energia que resulta da fricção de dois corpos, um contra o
outro. Dá medo de encostar o dedo e levar choque. Dito isso, quero contar que
me surpreendi com a solidariedade de estranhos em dadas situações. Duas vezes
ao longo do ano, meu adorado Pretinho, o vira-lata que neste momento me fita
com seus olhos de jabuticaba, me deu um susto. Vou contar só a mais recente
aventura. Dia de Natal, final de tarde, vamos meu filho e eu levá-lo para
passear. Mal atravessamos o portão, o maroto consegue escapar. Diante de nossos
olhos arregalados, se pôs a correr como um fogo de artifício. Suas patas
pareciam nem encostar no asfalto, de tão rápido que ia. Ziguezagueou pelo meio
da rua, invadiu a garagem de um vizinho, e, marotamente, olhou pra trás para
conferir se o seguíamos. Sim, íamos atrás dele, a coleira vazia e o coração na
mão. Tive medo de atropelamento, mas os poucos motoristas que passaram
entenderam a situação e diminuíram a velocidade. Houve quem desse sinal de luz
e quem até parasse. Pretinho descobrira seu lado guepardo e nada podia detê-lo.
Disparou por uma rua lateral fazendo apenas uma ou outra parada para cheirar um
poste ou algo que só ele notava no gramado. E nós atrás. Fiquei brava, mas
admito: Pretinho correndo é um espetáculo que merece ser visto. Nasceu pra
isso. Meu instinto protetor faz o que pode para confiná-lo entre paredes
seguras e o bicho se mostra em toda sua grandeza ao desafiar o trânsito.

Mas eu falava em solidariedade. Tive mostras dela na rua
lateral onde Pretinho exibia sua habilidade nos 500 metros com barreiras e eu
exibia a língua correndo atrás dele. Um motorista parou seu carrão de luxo ao
nosso lado e, falando como um profissional, perguntou: “Vocês vão conseguir? Ou
querem que eu vá atrás dele?” Ele parecia seguro de que, em suas mãos, o
problema estava resolvido. Agradecemos a gentileza, mas o liberamos. Lá na
frente, Pretinho quase desaparecia do nosso campo de visão quando passou por um
carrinho estacionado em frente a um condomínio de alto padrão. Pretinho, sempre
muito sociável, notou a motorista que olhava pela janela aberta e foi lá
cumprimentá-la. Depois voltou aquilo que faz de melhor, ou seja, fugir em
desabalada carreira. A mulher saiu de dentro do Corcel: vestia um uniforme de
faxineira, cabelos presos em um coque e pés descalços. Como a maioria dos seres
humanos, tinha um celular na mão. Falava com alguém, mas só para repetir:
“Agora vou ajudar umas pessoas a pegar um cachorro.” Começou a chamar Pretinho e
a nos orientar sobre o que fazer. Correu com os pés no chão pelo asfalto.
Dava-nos instruções (“não corram, não briguem com ele”). Ela me explicou que
sabia tudo sobre cães fujões porque Marizoca, sua cadelinha, escapava com
frequência, tendo a última fuga ocorrida no dia anterior. Ela ainda precisou
explicar umas duas vezes para sua interlocutora que ia desligar porque estava
ajudando alguém. Notei, então, o desaparecimento do celular, que, meu filho
esclareceu mais tarde, foi guardado – segundo ele notou – dentro do decote.
Pretinho chegou a se aproximar da nossa treinadora, que tentava nos adestrar
nas artes de não ser dominado pelo cão. Mas ele notou minha aproximação e
partiu para mais uma corridinha.

A moça de uniforme me explicou que tinha acabado de
trabalhar no almoço de Natal dos patrões e estava aguardando a colega. Por que
descalça? Diante de tanta gentileza, não era o caso de perguntar.

Agradeci o empenho com um abraço, com um feliz ano novo, e
ela voltou para seu veículo –um Passat? -- enquanto meu filho e eu mudávamos de
estratégia. Forçamos Pretinho a ir na direção de casa e, depois de mais algumas
aventuras, conseguimos colocar a coleira e levá-lo para dentro.

Por essas e outras, meu vira-lata é uma celebridade na
vizinhança.

Já vi muita briga de vizinhos por causa de cachorros,
algumas até bem feias. Também este ano testemunhei uma em que uma arma foi apontada
para o homem que se negava a catar a “lembrancinha” que seu cão deixava na
grama do vizinho. Mas também tenho tido incríveis mostras de solidariedade de
quem me viu em apuros por causa de Pretinho (sempre ele!). 

Então me despeço aqui de 2018, desejando a mim mesma, a
vocês, a todos nós um ano em que haja menos momentos de armas apontadas para o “inimigo”
e mais mostras dessa grandeza que é a solidariedade desinteressada.

(Gazeta do Povo, 27 de dezembro de 2018)


Tanta coisa boa em um só lugar

Arte: Felipe de Lima Mayerle

Quando ele me vê, vem correndo na minha direção, os cachos
loiros balançando no ar, os braços agitados de um jeito engraçado. Diante de
mim, não tem bom dia nem como vai. O bonitão vai direto ao assunto: quero ver o
cachorrinho. Ou: quero ver o gatinho. Meu vizinho tem três anos e ao me ver pensa
logo nos meus animais. Se não vê o gato na garagem ou sobre o muro me pergunta
onde ele está. Qualquer resposta que eu lhe dê é recebido com um ar de surpresa.
Talvez seja incompreensível para ele que o gato prefira dormir dentro de casa
do que brincar lá fora.

Samuel é uma das crianças que cresce na minha vizinhança.
Com algumas delas, tenho alguma interação. 
Interagir com criança pequena é uma fonte de deslumbramento que não
desprezo. Conforme elas vão crescendo, vão se distanciando de nós adultos. De
cada uma delas guardo na memória um momento de originalidade que iluminou meu
dia.

Gustavo era aquele que me abordava quando eu saia para o trabalho
e me contava coisas que eu não entendia; falava num tatibitate que talvez só a
mãe traduzisse. Segurando um objeto tão indecifrável quanto sua fala, um pedaço
de um objeto qualquer que eu não identificava, fazia um sinal com a mãozinha. Queria
me contar algo. Eu parava diante dele e ouvia suas histórias narradas em uma língua
estrangeira. A mesma língua em que todos nós fomos fluentes um dia, mas esquecemos.
As falas vinham acompanhadas por gestos e expressões que diziam muito. Posso
até inventar uma história a partir do que vi no rostinho do Gustavo, mas não
tenho a menor ideia do que ele de fato tentava me dizer.

Houve outro menino, João, que costumava caminhar por um
pequeno pátio, sempre perdido em seus pensamentos. Provavelmente imaginava
aventuras ou relembrava algo que havia lido, talvez batalhas disputadas no
vídeo game. A imaginação era tão forte que se punha a gesticular e expressar no
rosto as emoções que a aventura lhe provocava. Fazia isso diariamente. Às vezes
eu o via lá fora e avisava meus filhos: “O João está lá fora, sonhando”. Não
ousávamos atrapalhar os sonhos do João.

A Gabriela, rara menina em uma vizinhança tomada por
meninos, me fez ver que algumas diferenças entre eles começam cedo. Por um
motivo qualquer, foi encarregada de levá-la um dia para a escola. Ela e meus
filhos estudavam na Escola Estadual Ângelo Trevisan. No curto percurso, que meus
dois meninos sempre faziam calados, a menina Gabriela falava sem parar. Me contou
sobre professoras e colegas com deslumbramento, como se descrevesse estrelas de
Hollywood. Usava muitos adjetivos: lindo, fofa, incrível. Cada frase, um
adjetivo. Ela até soava convincente porque seu entusiasmo era genuíno, assim
como sua necessidade de falar. Gabriela, dos lindos olhos verdes, que já
mocinha me contou que o pai havia proibido um namorico. Parecia resignada, mas
se saiu com essa: “E como fica o meu coração, tia?”

**

A Escola Estadual Ângelo Trevisan vai mudar para um outro
prédio no próximo ano. Vai dividir espaço com o Colégio Bom Pastor, outro que
luta para sobreviver. A Ângelo Trevisan é uma linda escolinha que faz par com a
capela de São Judas Tadeu, no outro lado da rua, as duas construídas pela
comunidade italiana do bairro Cascatinha. Deve ser uma das últimas, se não a
última, escola de Curitiba que ocupa um imóvel de madeira: tábuas largas e
mata-junto, piso que range quando caminhamos.

Ao longo dos anos, a direção da Ângelo Trevisan construiu
uma ótima reputação para a escola. Graças à Antonia, Maria Gorete, Enedina,
Dalva, Cris, Ana e tantos outros e outras que conseguiram oferecer um bom ensino
apesar da instabilidade do sistema de ensino estadual, engessado que é por
regras e pelo orçamento apertado que faz de cada volta às aulas uma aventura.

***

Do outro lado da rua, a capela, também de madeira, se
destaca em um terreno alto, sempre bem cuidada, sempre renovada com novas
camadas de tinta. É zelada por algumas famílias que organizam almoços para
arrecadar fundos. Nos almoços, serve-se a comida típica de Santa Felicidade. O atendimento
é simpático e eficiente. Estão sempre lotados.

A primeira vez que entrei na capela, às oito da manhã de um
domingo, tive uma surpresa: para atender a pequena comunidade, subiu ao altar um
padre de pele negra como a noite. Sorridente e bom pregador, era haitiano e me
pareceu totalmente integrado à italianada. Ao fim da missa, vi as senhorinhas
do Cascatinha abraçando e beijando o simpático padre Gustot, que é da
Congregação dos Scalabrinianos, que dá assistência a imigrantes ali na igreja
matriz de Santa Felicidade. Ele se revezava com os outros padres da paróquia
para celebrar a missa semanal na capela.

Sou uma estrangeira por aqui. Não faço parte das famílias com
belos sobrenomes italianos que são maioria no Cascatinha.  Então não falo por eles, mas para mim o
grande patrimônio deste bairro são a escola Ângelo Trevisan, a Capela de São
Judas Tadeu, o rio Uvu e alguns restos de bosques onde se protegem as aves
barulhentas que nos acordam todas as manhãs.

***

O lema dos padres Scalabrinianos é o versículo de Mateus:
“Eu era estrangeiro e vocês me acolheram”.


Mais um dezembro

Anos atrás fui abordada por uma senhora, a dona Hilda Bonatto
Ribeiro, que batia nas portas dos vizinhos procurando pessoas dispostas a
presentear desconhecidos. São crianças pobres, ela contava. E explicava: as
organizadoras elegem uma comunidade carente, listam as crianças e colam
etiquetas com os dados de cada uma delas em uma sacola de plástico vermelho. As
sacolas são entregues a pessoas dispostas a ajudar e depois recolhidas com os
presentes (brinquedo, roupa, calçado e doces) e entregues durante uma festa. Aos
doadores cabe comprar os presentes; aos organizadores, localizar as pessoas de
boa vontade, levar até elas as sacolas vazias, recolhê-las cheias e entregá-las
aos presenteados. Uma trabalheira!

Dona Hilda participa porque gosta da ideia e para ajudar uma
amiga que ela preza muito, a Marizete Simioni, que junto com a filha Elisangela
distribui de 500 a 600 sacolas com presentes todos os Natais. Fazem isso assim,
como se não fosse nada. Como se não estivessem ajudando umas mil pessoas a
serem mais felizes – as que recebem os presentes e as que presenteiam – em uma
época do ano que, de tão festiva, provoca melancolia em muitos de nós.

Há 21 anos a família Simioni está nesta lida. Ela surgiu
como reação a uma tragédia. Hamilton Simioni, marido da Marizete, estava no voo
402 da TAM que caiu sobre o bairro do Jabaquara, em São Paulo, logo depois de
decolar em Congonhas na manhã do dia 31 de outubro de 1996. No velório de
Hamilton apareceram pessoas que foram ajudadas por ele. Queriam homenageá-lo. Ele
era dado a fazer doações para igrejas, asilos, escolas. O susto e a dor ainda
ardiam no peito quando dona Marizete decidiu ir para a rua melhorar o Natal de
outras famílias, já que o dos Simioni seria inevitavelmente marcado pela perda
tão recente.

Não posso contar exatamente o que passou pela cabeça dela e
se a trabalheira em que se meteu logo após perder o marido teve efeito
terapêutico. Conversei com Marizete brevemente e notei que ela fala pouco dos
500 presentes, como se fossem café pequeno, e que conta sobre a morte do
companheiro Hamilton de forma serena. Deduzo então que sim, as sacolas de Natal
e outros projetos que ocupam seus dias ajudam a ela também. Não fosse assim,
não estaria Marizete, duas décadas depois, lotando a casa de sacos vermelhos
que levará até lugares distantes da Santa Felicidade onde ela e a amiga Hilda
moram. Também providenciará os comes e bebes para que a entrega das sacolas seja
especial, com festa, o que inclui um Papai Noel bem-disposto para abraçar 50 ou
cem crianças em cada parada. 

***

É dezembro. A cidade grita “Natal”.

Sei que a decoração natalina de Curitiba já teve dias
melhores. Ou piores, dependendo da sua opinião sobre lâmpadas coloridas
piscando noite adentro. Da minha base, entre os bosques do Cascatinha (que eles
resistam por muitos anos!), vejo “natalinos” convictos que cobrem as fachadas
com lâmpadas coloridas. Um dia, todas brilham; no outro dia metade do cordão
está apagado. Vanderlei, o nosso “faz-tudo”, garante que dias melhores virão:
agora temos fitas de led que não
“queimam”. O pisca-pisca será permanente, do dia da República até o dia de
Reis.

No bosquezinho onde levo o cachorro para passear, observo
nosso Natal mestiço. O pinheiro (não é uma araucária, mas uma espécie
estrangeira) deixa cair suas pinhas que têm cara de inverno europeu. A
castanheira (também uma espécie estrangeira) está exibindo seus frutos, que
logo vão se misturar com as pinhas no chão. Ao lado, a pitangueira entra mais
um mês carregadinha, assim como a amoreira e o butiá. Só a guabiroba não
esperou por dezembro. Seus últimos frutos foram comidos pelos saguis e tucanos
na semana passada.


Procura-se um homem feliz

O russo Vladimir Maiakovski, em um momento de desalento,
escreveu: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem
feliz". A frase é linda, carregada de poesia, mas também de ironia. O
Brasil aparece na frase como sinônimo de um lugar inacessível para o autor, de
um lugar muito distante do ponto onde ele se encontra. Talvez até localizado fora
da civilização que Maiakovski conhecia.

Ilustração: Felipe Mayerle

Mesmo assim, a frase do poeta russo se juntou a tantas outras
espalhadas por livros de grandes autores que, por algo que eles enxergaram ou
sentiram, apontaram o Brasil como um lugar onde o ser humano poderia conhecer a
felicidade. Foram tantos que Gilberto Gil e Jorge Mautner até fizeram um samba
sobre isso (“Teddy Roosevelt sentiu / Rabindranath Tagore / Stefan Zweig viu
também / todos disseram amém / a essa luz que surgiu!”)

Você pode estar se perguntando o que essa gente tinha na cabeça... Pelo menos é o que eu estou me perguntando.

Meu palpite: a boa vontade de todas estas pessoas
inteligentes tem a ver com a dimensão territorial do Brasil (que, em termos
geopolíticos, é sinônimo de potência) e com o comportamento não agressor. Potências
tendem a ser agressivas, invasoras, prepotentes, mas o Brasil não é visto
assim. Essa imagem pacífica, aliás, é um dos mitos fundadores da nação
brasileira. Um mito constantemente traído pela realidade interna, mas mitos têm
força.

O Brasil faz parte, junto com o Canadá e a Austrália, do
grupo de países gigantescos, jovens, com restos de natureza intacta e com um
estilo de vida mais voltado para o desfrute do que para a conquista. Do ponto
de vista geográfico, o Brasil é o mais privilegiado desses três. Do ponto de
vista da gestão, é o pior.

Onde será que está o homem feliz anunciado por Maiakovski? É
você, meu leitor?

Exagero no espanto por razões meramente retóricas. Sei que deve
ter muita gente feliz no Brasil. Mas o ano que está quase terminando é daqueles
que testa nossa fé, nossa firmeza, nossa esperança. Desde o início de 2019 – e
antes dele também – vêm acontecendo tantos fatos tristes, há tanta
agressividade no ar, que este país não combina mais com felicidade. Um quadro
reversível, tenho certeza. Por enquanto, o que sabemos é que é difícil ser feliz
levando um susto atrás do outro, com tanta provocação no ar, tanto problema
ambiental. O país inteiro precisa parar para respirar, esvaziar a mente e
aceitar. Sim, aceitar. Aceitar o fluxo da história, que uns vão e outros vem.
Que os que foram poderão voltar um dia desde que não arrombem a porta, que
ninguém tem 100% razão, ninguém é o salvador da pátria. Aliás, a pátria nem
figura entre as preocupações dos “salvadores”.

Rejeitar a beligerância, tenha ela a cor política que tiver,
é hoje um ato de resistência.

***

Jorge Luis Borges, no conto “La Forma de la espada” fala de
um personagem que andava pelo Brasil, cruzando a fronteira com a Argentina. Era
uma mistura de homem bom e bandido. O tal personagem era um estrangeiro, inglês
ou irlandês, e mesmo assim, talvez mais próximo da nossa realidade atual do que
o “homem feliz” de Maiakovski.

***

Faz 30 anos que o Muro de Berlim deixou de existir. Foi no
dia 9 de novembro de 1989 que o governo da Alemanha Oriental liberou seus
cidadãos para saírem do país por qualquer dos pontos de controle da fronteira,
o que incluía os portões do muro que dividia Berlim. O governo comunista não
sabia o que estava fazendo, conforme mostram os relatos da época. Queria apenas
resolver um problema com a Tchecoslováquia: os alemães orientais estavam fugindo
aos milhares através da fronteira tcheca e o país vizinho exigiu alguma
providência. Os funcionários encarregados de redigir o documento que liberalizava
a saída (a ideia inicial era permitir apenas a imigração sem retorno, o que
desestimulava quem tinha família) decidiram fazer mudanças e nenhum membro
graduado do governo percebeu. Aprovaram, assinaram, anunciaram, tudo isso sem
perceber aonde aquilo ia dar. Os fatos daquele dia podem ser acompanhados no
livro “1989 – O Ano que mudou o mundo”, de Michael Meyer (Ed. Zahar) ou na
reportagem publicada no último número da revista Piauí, que traz muitos
detalhes. Ambos valem a leitura.

É difícil encontrar outra mostra da força de um símbolo. O
muro representava a divisão do mundo entre comunismo e capitalismo e o poder da
União Soviética. Quando o que ele simbolizava perdeu a força, o muro deixou de
existir, sem violência, de uma hora para outra, quase por mágica.

***

Me despeço invocando novamente Maiakovski:

“Quatro vezes envelheço — quatro vezes

rejuvenesço,

até que a morte me apareça defronte.

Onde quer que eu morra,

. . . . . . . .
. . . . . morrerei cantando.

Mas seja qual for a minha sorte —

. . . . . . . a morte é a morte.

Terrível — não amar,

. . . . . . . terror — não ousar.

(3 de novembro de 2019)