O professor Gaetano Salvemini entra no anfiteatro da universidade de Florença. É calvo, usa barba e bigode brancos bem aparados e óculos de lentes redondas. Veste terno e gravata. Encara seus alunos do curso de História e diz: “Como eu estava dizendo na última aula…”
Quantas vezes, em quantos cantos do mundo, professores usaram estas mesmas palavras para abrir uma aula?
No caso de Salvemini, a escolha dessa frase foi tão extraordinária que se tornou parte de sua biografia. Por quê? É que a última aula do professor Salvemini havia sido interrompida mais de 20 anos antes. Em 1928, depois de ser preso e perseguido pelo governo fascista ao qual se opôs em livros e artigos, ele se exilou nos Estados Unidos. Naquela manhã de 1949, estava de volta e, talvez para marcar a retomada de uma trajetória — dele e da Itália — interrompida pelo fascismo e pela guerra, ele usou essa frase tão cotidiana para um professor: “Como eu estava dizendo na última aula…” É como se dissesse: “Me arrancaram daqui, puseram minha geração no campo de batalha, jogaram anos da nossa vida no lixo, mas nós sobrevivemos e retomamos do ponto onde estávamos.” Como se todos aqueles anos escuros, aquele pesadelo de dimensão mundial, tivesse sido parênteses abertos e depois fechados na vida que pulsava dentro da sala de aula.
O historiador português Rui Tavares conta essa história de Salvemini e faz uma ressalva. Os jovens estudantes que estavam no anfiteatro da Universidade de Florença podem ter entendido a frase escolhida do professor Salvemini como um gracejo. Mas se escavassem em torno das palavras descobririam que não foi um gracejo, mas sim um ato de memória. A frase “como eu estava dizendo na última aula…” era uma referência à frase em latim “dicebamus hesterna die” ou “como dizíamos ontem”, que havia sido usada em várias ocasiões semelhantes àquela.
A primeira e bem documentada ocasião foi quando o frei Luiz de Leon, um intelectual espanhol perseguido pela Inquisição, voltou à sala de aula. Ele havia sido preso enquanto dava uma aula na universidade de Salamanca. Quatro anos depois, ao sair da prisão, abriu sua primeira aula assim: “como dizíamos ontem…”. Isso aconteceu na época em que, por aqui, os portugueses exploravam pau-brasil.
Pouco antes de Salvemini, outro historiador, Norberto Bobbio, também perseguido pelo fascismo, ao voltar à Itália após o exílio, iniciou sua primeira aula na universidade de Roma com essas palavras: “como dizíamos ontem…”
Em Paris, após sobreviver à guerra e ao Holocausto, Gustave Cohen, um historiador judeu, voltou à Sorbonne e abriu sua aula com “dicebamus hesterna die”.
Rui Tavares argumenta que o uso desta frase como uma piada de historiador só funciona se acontecer no momento certo, ou seja, depois de termos sido desviados do nosso caminho por um ataque, uma injustiça, uma tentativa de silenciamento. Depois de termos ficado isolados enquanto coisas terríveis aconteciam lá fora. Mas só depois que tivermos retomados o nosso caminho. Gaetano Salvemini esperou 20 anos para fazer a piada.
Me parece que nós, humanidade, estamos em um intervalo doloroso, com nossas vidas suspensas por uma força maior que, um dia, venceremos. Quando as crianças e os jovens voltarem às salas de aula, os professores poderão recebê-los assim: como dizíamos na última aula…
Me parece também que o Brasil está há alguns anos se debatendo para não afundar de vez em um lamaçal que nos impede de seguir em frente. Apenas nos debatemos e vamos sobrevivendo, levando a vida sem de fato vivê-la, desnorteados a cada dia com a falta de um projeto comum de país, enfraquecidos por termos o egoísmo e a vaidade como valores-mestres, atacados por um conservadorismo tacanho que se baseia na ignorância. Quando isso tudo acabar – porque, afinal, tudo acaba – alguns de nós dirão “como dizíamos ontem…” e tentarão recuperar o tempo perdido.
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Rui Tavares, que é colunista do jornal O Público, de Lisboa, está escrevendo um livro que deve receber o título de “Agora, agora e mais agora?”. A explicação que ele dá para o título é curiosa: sua bisavó sofreu um derrame e perdeu a capacidade de falar. Muito tempo depois, conseguiu dizer uma palavra: agora. Sem ter escolha, expressava tudo o que queria dizer assim: “Agora agora e mais agora?” Usava a mesma frase para raiar com os netos, para se mostrar satisfeita ou para reclamar da vida. Só mudava a entonação, trocando a interrogação por uma exclamação ou por reticências ou pelo ponto final.
O tema do livro do historiador é o presente, o atual estado das coisas. Mas como historiador, precisa fazer isso olhando para o passado. Ele quer falar do agora em que estamos hoje trazendo de volta os agoras que ficaram para trás.
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Quando o professor Gaetano Salvemini deu aquela famosa aula em Florença, seu enteado Jean, a quem ele amava como um filho, já tinha sido condenado à morte e executado, em Paris. Jean Luchaire foi um francês que aderiu ao nazismo e apoiou a ocupação da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra para desespero do padrasto.
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O frei Luis de Leon ficou cinco anos preso e durante este tempo escreveu poemas até nas paredes da masmorra. Dizem seus biógrafos que o que fez dele um alvo da Inquisição não foi alguma forma de radicalismo, mas o contrário. Era um humanista e tudo que era humano lhe interessava: poesia, música, a relação com a natureza, a filosofia. Traduziu para o espanhol o Cântico dos Cânticos, versos do Antigo Testamento que eram mal vistos por serem sensuais. Traduzir as Escrituras, naquela época, era pisar em terreno minado. Protestantes traduziam de um jeito. Católicos de outro. Luis de Leon era um frade católico, mas queria traduzir do seu jeito, diretamente do hebreu. Escreveu um livro intitulado “Os nomes de Cristo”. Atrás de cada nome (Salvador, Filho de Deus, Senhor, Jesus) ele viu uma história. Cada nome é um novo sinal. Cada nome indica um caminho possível para a salvação.