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O russo Vladimir Maiakovski, em um momento de desalento, escreveu: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. A frase é linda, carregada de poesia, mas também de ironia. O Brasil aparece na frase como sinônimo de um lugar inacessível para o autor, de um lugar muito distante do ponto onde ele se encontra. Talvez até localizado fora da civilização que Maiakovski conhecia.

Ilustração: Felipe Mayerle

Mesmo assim, a frase do poeta russo se juntou a tantas outras espalhadas por livros de grandes autores que, por algo que eles enxergaram ou sentiram, apontaram o Brasil como um lugar onde o ser humano poderia conhecer a felicidade. Foram tantos que Gilberto Gil e Jorge Mautner até fizeram um samba sobre isso (“Teddy Roosevelt sentiu / Rabindranath Tagore / Stefan Zweig viu também / todos disseram amém / a essa luz que surgiu!”)

Você pode estar se perguntando o que essa gente tinha na cabeça… Pelo menos é o que eu estou me perguntando.

Meu palpite: a boa vontade de todas estas pessoas inteligentes tem a ver com a dimensão territorial do Brasil (que, em termos geopolíticos, é sinônimo de potência) e com o comportamento não agressor. Potências tendem a ser agressivas, invasoras, prepotentes, mas o Brasil não é visto assim. Essa imagem pacífica, aliás, é um dos mitos fundadores da nação brasileira. Um mito constantemente traído pela realidade interna, mas mitos têm força.

O Brasil faz parte, junto com o Canadá e a Austrália, do grupo de países gigantescos, jovens, com restos de natureza intacta e com um estilo de vida mais voltado para o desfrute do que para a conquista. Do ponto de vista geográfico, o Brasil é o mais privilegiado desses três. Do ponto de vista da gestão, é o pior.

Onde será que está o homem feliz anunciado por Maiakovski? É você, meu leitor?

Exagero no espanto por razões meramente retóricas. Sei que deve ter muita gente feliz no Brasil. Mas o ano que está quase terminando é daqueles que testa nossa fé, nossa firmeza, nossa esperança. Desde o início de 2019 – e antes dele também – vêm acontecendo tantos fatos tristes, há tanta agressividade no ar, que este país não combina mais com felicidade. Um quadro reversível, tenho certeza. Por enquanto, o que sabemos é que é difícil ser feliz levando um susto atrás do outro, com tanta provocação no ar, tanto problema ambiental. O país inteiro precisa parar para respirar, esvaziar a mente e aceitar. Sim, aceitar. Aceitar o fluxo da história, que uns vão e outros vem. Que os que foram poderão voltar um dia desde que não arrombem a porta, que ninguém tem 100% razão, ninguém é o salvador da pátria. Aliás, a pátria nem figura entre as preocupações dos “salvadores”.

Rejeitar a beligerância, tenha ela a cor política que tiver, é hoje um ato de resistência.

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Jorge Luis Borges, no conto “La Forma de la espada” fala de um personagem que andava pelo Brasil, cruzando a fronteira com a Argentina. Era uma mistura de homem bom e bandido. O tal personagem era um estrangeiro, inglês ou irlandês, e mesmo assim, talvez mais próximo da nossa realidade atual do que o “homem feliz” de Maiakovski.

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Faz 30 anos que o Muro de Berlim deixou de existir. Foi no dia 9 de novembro de 1989 que o governo da Alemanha Oriental liberou seus cidadãos para saírem do país por qualquer dos pontos de controle da fronteira, o que incluía os portões do muro que dividia Berlim. O governo comunista não sabia o que estava fazendo, conforme mostram os relatos da época. Queria apenas resolver um problema com a Tchecoslováquia: os alemães orientais estavam fugindo aos milhares através da fronteira tcheca e o país vizinho exigiu alguma providência. Os funcionários encarregados de redigir o documento que liberalizava a saída (a ideia inicial era permitir apenas a imigração sem retorno, o que desestimulava quem tinha família) decidiram fazer mudanças e nenhum membro graduado do governo percebeu. Aprovaram, assinaram, anunciaram, tudo isso sem perceber aonde aquilo ia dar. Os fatos daquele dia podem ser acompanhados no livro “1989 – O Ano que mudou o mundo”, de Michael Meyer (Ed. Zahar) ou na reportagem publicada no último número da revista Piauí, que traz muitos detalhes. Ambos valem a leitura.

É difícil encontrar outra mostra da força de um símbolo. O muro representava a divisão do mundo entre comunismo e capitalismo e o poder da União Soviética. Quando o que ele simbolizava perdeu a força, o muro deixou de existir, sem violência, de uma hora para outra, quase por mágica.

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Me despeço invocando novamente Maiakovski:

“Quatro vezes envelheço — quatro vezes

rejuvenesço,

até que a morte me apareça defronte.

Onde quer que eu morra,

. . . . . . . . . . . . . morrerei cantando.

Mas seja qual for a minha sorte —

. . . . . . . a morte é a morte.

Terrível — não amar,

. . . . . . . terror — não ousar.

(3 de novembro de 2019)