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\"\"<\/figure><\/div>\n\n\n\n

A m\u00e3o toca as costas da menina por dentro do pijama de malha. \u201cSuas costas est\u00e3o \u00famidas. Sabe por que?\u201d <\/p>\n\n\n\n

Ela acha que sabe a resposta. As costas est\u00e3o \u00famidas porque fez muito xixi. Bebeu \u00e1gua antes de dormir, n\u00e3o devia, mas teve sede, a m\u00e3e n\u00e3o entende e\u2026<\/p>\n\n\n\n

N\u00e3o fala nada. Os olhos olham os p\u00e9s descal\u00e7os. N\u00e3o pisca para evitar que a l\u00e1grima role pelo rosto.<\/p>\n\n\n\n

\u201cPorque voc\u00ea passou calor durante a noite e suou.\u201d<\/p>\n\n\n\n

Ah\u2026 Suei\u2026 <\/p>\n\n\n\n

O al\u00edvio logo d\u00e1 lugar \u00e0 vergonha que sentia minutos antes. Al\u00e9m de fazer xixi, ela sua. A m\u00e3e t\u00e1 reclamando. A m\u00e3e\u2026<\/p>\n\n\n\n

\u201c\u00c9 ver\u00e3o, filha.\u201d<\/p>\n\n\n\n

A m\u00e3o da m\u00e3e vai guiando suavemente a menina na dire\u00e7\u00e3o do banheiro. Tomar banho, bem r\u00e1pido. No corredor, v\u00ea o irm\u00e3o l\u00e1 na sala lendo um gibi. Ele levanta os olhos. Ningu\u00e9m diz nada, mas ela sofre. Que vergonha, uma menina grande, cinco anos, que molha a cama como um beb\u00ea.<\/p>\n\n\n\n

Tem algo diferente naquela manh\u00e3, ela percebe ao entrar na cozinha pequena, onde a cestinha de p\u00e3o e o pote de margarida a esperam sobre a mesa. A m\u00e3e prepara uma x\u00edcara de caf\u00e9 com leite \u2013 como sempre. Ela mesma pega um p\u00e3ozinho, aquela faca com serra em forma de ondas do mar, e corta a massa crocante que apoia contra o peito \u2013 como sempre. <\/p>\n\n\n\n

Os irm\u00e3os est\u00e3o por a\u00ed, brincando. S\u00f3 falta ela para tomar o caf\u00e9 da manh\u00e3 porque teve o banho. Sai da cozinha olhando em volta em busca de algo novo que sente que est\u00e1 no ar. Quando abre a porta que leva para o quintal, a luminosidade da manh\u00e3 cega seus olhos, que se fecham. As m\u00e3ozinhas cobrem o rosto, como se brincasse de cobra-cega. A\u00ed vai afastando os dedos para sondar. Um p\u00e1ssaro canta uma frase demorada. Essa luz brilhante, o gorjeio mais forte dos p\u00e1ssaros, o calorzinho na pele, o chinelinho de dedo no p\u00e9, tudo isso se junta para comunicar que \u00e9 f\u00e9rias, que n\u00e3o tem escola, que os irm\u00e3os tamb\u00e9m ficar\u00e3o em casa, que vai brincar at\u00e9 tarde l\u00e1 fora. <\/p>\n\n\n\n

\u2014 Por que o dia t\u00e1 diferente, m\u00e3e?<\/p>\n\n\n\n

\u2014 Diferente como?<\/p>\n\n\n\n

\u2014 N\u00e3o sei. Voc\u00ea n\u00e3o t\u00e1 vendo?<\/p>\n\n\n\n

\u2014 Vendo o qu\u00ea?<\/p>\n\n\n\n

Ela vai falar\u2026 e para. O qu\u00ea mesmo? <\/p>\n\n\n\n

\u2014 O sol \u2013 \u00e9 a \u00fanica palavra que lhe vem \u00e0 boca.<\/p>\n\n\n\n

\u2014 Ah, o ver\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Ent\u00e3o isso que est\u00e1 sentindo \u00e9 o ver\u00e3o? Talvez aquele tenha sido o primeiro ver\u00e3o de que ela se deu conta. Dali para a frente sempre reconhecer\u00e1 aquela sensa\u00e7\u00e3o de que h\u00e1 algo novo, uma energia clara e morna que vem do quintal e entra na casa e que d\u00e1 vontade de ir para fora. Todo ano tem ver\u00e3o e todo ver\u00e3o ela sentir\u00e1 isso.<\/p>\n\n\n\n

Caminha pelo quintal. Um quintal \u00e9 um mundo inteiro quando se tem cinco anos. Adulta, ainda conseguir\u00e1 descrever o piso de tijolos, a escadinha que leva para o n\u00edvel mais baixo do terreno, a ed\u00edcula onde est\u00e1 a m\u00e1quina de lavar roupa, que \u00e9 feita de t\u00e1buas. Algumas t\u00e1buas, em um dos cantos, est\u00e3o apodrecendo. Ela observa. <\/p>\n\n\n\n

Ap\u00f3s o almo\u00e7o, volta ao quintal. Agora a casa est\u00e1 silenciosa. A m\u00e1quina de lavar roupa, ali ao lado, faz vrum-vrum, vrum-vrum. As tardes de ver\u00e3o s\u00e3o quietas nas cidades pequenas. Quando entardecer, aquela barulheira dos p\u00e1ssaros que ouviu ao acordar voltar\u00e1. Com o calor, os p\u00e1ssaros se multiplicaram. Est\u00e3o no velho abacateiro mal podado, est\u00e3o na ameixeira, talvez no raqu\u00edtico limoeiro. <\/p>\n\n\n\n

No quintal daquela casa alugada, onde a fam\u00edlia chegou faz pouco tempo, cada mecanismo \u00e9 explorado pelas m\u00e3ozinhas de menina. Ela tem prefer\u00eancia por dobradi\u00e7as, como a do port\u00e3ozinho; observa de perto o trinco antiquado que um dia teve uma chave que ningu\u00e9m sabe onde est\u00e1; a janela da ed\u00edcula \u00e9 fechada por uma tramela, apenas um peda\u00e7o de madeira preso ao centro por um prego. Tem as torneiras, a do tanque da lavanderia, de onde a \u00e1gua sai com muita for\u00e7a, e outra na parede dos fundos, que ningu\u00e9m usa. <\/p>\n\n\n\n

Naquela tarde quente, a menina encontrou um objeto maravilhoso. \u00c9 um peda\u00e7o de bambu, longo, que colocado em p\u00e9, tem o dobro da sua altura. De onde veio, n\u00e3o sabe. Percebe que veio da natureza e n\u00e3o de uma f\u00e1brica, mas \u00e9 reto como um cano de \u00e1gua. Tem uma ideia. Arrasta o bambu at\u00e9 a torneira que sai da parede nos fundos da casa e tenta encaixar nela uma das pontas. O bambu \u00e9 longo e desajeitado. Mas ela insiste. Ent\u00e3o abre a torneira. A expectativa de ver a \u00e1gua sair do outro lado a deixa feliz. A torneira range quando as m\u00e3ozinhas for\u00e7am a abertura. For\u00e7a mais, o bambu ainda engatado na boca da torneira. Ela imagina a \u00e1gua saindo do outro lado. Que coisa incr\u00edvel est\u00e1 fazendo! Chamar\u00e1 o irm\u00e3o pra ver. Mas a \u00e1gua n\u00e3o sai. Gira e gira a torneira, tira o bambu e abaixa a cabecinha para olhar l\u00e1 dentro da torneira. N\u00e3o v\u00ea nada. N\u00e3o tem \u00e1gua. N\u00e3o se conforma. Crian\u00e7as de cinco anos n\u00e3o se conformam nunca. N\u00e3o se consolaria se soubesse que o bambu tem n\u00f3s dentro dele, que n\u00e3o deixariam a \u00e1gua passar. Tenta por bastante tempo. Ent\u00e3o ouve a voz da m\u00e3e, est\u00e1 cantando. Se anima e corre para casa. Quer ouvir de perto. Cantar junto, quem sabe? No caminho, descal\u00e7a os chinelinhos que atrapalham seus passos. Ao chegar perto da porta aberta do quarto dos pais, ouve a voz da irm\u00e3, que tenta cantar tamb\u00e9m. Est\u00e3o juntas, as duas sobre a cama, abra\u00e7adas e rindo. A irm\u00e3 mal sabe falar e mesmo assim balbucia as palavras da can\u00e7\u00e3o. A menina podia entrar no quarto, subir na cama e se juntar a elas. Mas n\u00e3o a notam e ela sente que aquele momento n\u00e3o pertence a ela. Faz biquinho, abaixa a cabe\u00e7a e volta pro quintal. Senta no degrau na porta da cozinha, os p\u00e9s no piso quente pelo sol de dezembro, e chora baixinho. <\/p>\n\n\n\n

Por entre as l\u00e1grimas, observa o rejunte de cimento entre os tijolos do degrau. Passa o dedo e sente que \u00e9 \u00e1spero. Dobra-se e apoia a testa sobre os joelhos. Olha o ch\u00e3o. Uma formiguinha aparece no seu campo de vis\u00e3o e se afasta rapidamente carregando um pedacinho de folha. Enxuga as l\u00e1grimas com a barra do vestido e vai atr\u00e1s dela.
\n(Gazeta do Povo, 1\u00ba de dezembro de 2018)<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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